O JARRO
Reinaldo de Morais Filho

Um jarro caiu no chão. E não tivesse caído? O vento que soprou por uma tênue fresta empurrou a peça que estava no aparador da sala de jantar. Uma belíssima sala de jantar, de decoração renascentista, obras caras, gosto erudito.

De que vale a erudição se ela é adquirida por se poder pagá-la, apenas? E se não pudesse? Quem seria aquele senhor se o dinheiro não custeasse os cursos de degustação, as aulas de arte, os estudos em filosofia?

Acordou quando o último caco se aquietou sob a mesa. Gemeu, enxugou a saliva, roçou os olhos como qualquer homem sonolento. Não era qualquer homem, desde que nasceu em berço de ouro, sob os olhares atentos, exibido na sociedade.

E se ele não tivesse acordado? Lembrou-se do barulho, rosnou, balbuciou palavrões, reclamou como se não houvesse curiosidade. Levantou-se vagarosamente, compondo-se em um roupão de seda, nas sandálias finas.

Ainda olhou no espelho, arrumou a barba grisalha, o bigode denso sobre a boca carnuda. Passou a mão na cabeça calva. E se não fosse careca? Recordou-se de que já aos vinte anos tinha que raspar os parcos cabelos, tinha que se destacar em quase tudo para compensar esta deficiência. Nunca pensou em se recompensar.

E andou em direção à sala, em cima do mármore frio. Ficou novamente descalço para senti-lo. Um gélido ar de saudades, um breve momento de recordação, um sorriso surpreendente no rosto que mesclava sono e raiva e tédio. Lembrou-se de Ana.

E se não houvesse Ana? Lembrou-se do dia que sentaram em uma praça, junto aos mendigos, ao lado de gatos imundos, tocados pelas folhas secas que caíam das árvores velhas, em uma tarde de inverno, o chão gelado. Uma praça mal-cuidada, mas de um destrato poético. Havia ritmo quando se tocaram os dedos.

Houve um tempo em que pode esquecer quem era, ser quem quis. Cortou a barba, arrumou os cabelos, largou a rebeldia sem causa, falou com pai, pediu perdão à mãe, almoçou com a família e sorriu. Aprendeu a lidar com sua posição social por ter alguém que não se importava com isso, sem interesse.

Houve um tempo que podia facilmente reconhecer em um beijo na praça o amor, em que se podia ser romântico, em que se podia viver os sentimentos. Sabia que Ana seria sua um dia, acreditava que poderia ser sua para sempre.

Beijou até o cair da noite sem lembrar o ódio. E se não houvesse praça, poesia, perdão? Esqueceu que Ana havia acabado de avisar que estava viajando, para fazer um curso em outra cidade, por um ano. Esqueceu que ela pediu para romper o namoro. Esqueceu de dizer que a amava, um amor pós-adolescente que se abasteceu em dois meses para viver anos sem fraquejar.

A lua observou o último beijo, o adeus, as lágrimas, a solidão em que ficou abandonado. Observou o tempo passando, as voltas, a esperança, as crises. Observou o ano seguinte correndo nas veias dos dois jovens, as mudanças, o jarro caindo. Tão célere como se no piso da sala houvesse pedaços de folhas secas em vez de cerâmica.

Um outro vento o despertou dos seus sonhos. Acordou em pé diante de um quadro raro que não lhe significava nada; nada diante daquele entardecer simplório em uma praça abandonada, em um banco pobre. Sem erudição, sem requinte. E se não houvesse amor?

E um outro vento, e um outro, e um outro. Ventava em sua face como se estivesse na proa de um navio. E se as portas estivessem fechadas? Ana havia levantado, devia estar na varanda, "nem se incomodou com o jarro", como nunca se incomodou com nenhuma obra de arte, com nenhum restaurante requintado, com o luxo.

Ana aceitou a coroa por estar apaixonada pelo rei. Porém, sem nunca se tornar majestade. Comparecia às festas, tornou-se socialite, largou o trabalho. No mesmo dia, um largou a rebeldia, a outra enfraqueceu seus planos. Um rebelde sem causa, uma mulher independente, morreram juntos de mãos dadas para preservar a união, sem saber o quanto podiam ceder, o quanto suportariam, quando isso iria incomodar. E se não houvesse amor?

Não via a esposa na varanda. Não ouvia a resposta aos seus gritos. Não sentiu seu corpo. E se ela saltou? As lágrimas caíram como se fossem um vaso, como se fossem folhas secas, como se fossem um mau-presságio. Correu pelos cômodos, até chegar na cozinha, ao lado do fogão, no chão.

Um corpo deitado, uma garrafa de uísque vazia. Um corpo vazio, ao lado da garrafa deitada. Ana não pulou da varanda, e ele nem havia ido conferir, talvez por ter a certeza de que estava perto de fazer isso. Ana estava viva, porém em coma, em um lugar ermo onde pudesse, quem sabe, viver com seu amor uma vida que lhe apetecesse.

E se ela despertar? E se não houver tempo? Ana acordou. E se não houvesse amor?

E se o jarro não caísse?

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