TRÊS SIMPLES
Jorge Silva

A lanterna saltou da prateleira mais elevada e aterrou de esquina na moleirinha do senhor Ernesto, o rezingão da Rua Airosa. Maldita a hora, berrava, em que lhe dera para as arrumações. Qualquer decisão parecia ter o condão de se virar contra o desgraçado. Pelo menos, era assim que o senhor Ernesto via a coisa. Passava a vida infeliz e contrariado.

Tudo lhe acontecia, atraía o azar. Nesse dia, a malapata voltou. Só lhe apetecia fugir.

Tombada no chão, a lanterna enferrujada jazia coberta de pó. O senhor Ernesto agachou-se para a apanhar, enquanto esfregava com a mão a cabeça dorida. Tentou perceber que objecto seria e como tinha ido parar ao sítio mais adequado para o agredir um dia. Tinha-a recebido de presente, um indigente retribuíra assim a parcimónia da esmola que lhe dera, algures no Casbah de uma cidade marroquina.

O mendigo, tez escura de homem do deserto, proferira algumas palavras em árabe que o senhor Ernesto nunca conseguira decifrar. Nem tentara, aliás. Limitara-se a enfiar o artefacto em metal dentro da sacola, muito cioso do que era seu.

Uma praga, concluiu, assim se explicando o hematoma na careca e outros azares que o perseguiam. Nunca observara o objecto com a devida atenção, mas agora que estava a jeito ocorreu-lhe polir o que lhe pareceu uma tabuleta gravada. Esfregou-a com um algodão, até destapar todos os caracteres. Quando terminou, o resultado revelar-se-ia desanimador. O escrito era em árabe e o senhor Ernesto não o entendia.

Bufou de impaciência e lançou a lanterna para o cesto do lixo. Um brilhante clarão quase o fez desmaiar. Aturdido e com a visão perturbada, apenas distinguia a fumarada que emanava do contentor. Um incêndio ou coisa pior, certamente. Tudo lhe passava pela ideia naquele instante de confusão. Menos o que se-lhe deparou.

Como que saído da própria lanterna, um colossal indíviduo com trajes bizarros, aos olhos do senhor Ernesto pareciam turcos ou coisa que o valha, sacudia cascas de batata e outros detritos da sua fatiota de Carnaval.

Tresandava a porcaria, o calmeirão. Em sobressalto, o senhor Ernesto deitou a mão a uma faca de cozinha e questionou ameaçador:

- Quem é você? Identifique-se imediatamente ou chamo a polícia!

O outro, visivelmente enojado, fez-lhe sinal com a mão para aguardar um momento. Depois respondeu:

- Desculpe a demora, mas eu precisei de ajustar o Tradutor. O meu nome é Abdul e sou o génio da lanterna, como já deve ter percebido...

Não percebera. Insistia em brandir o cutelo, patético, tremia. Tentava atrair o telefone com o olhar mas não conseguia. Abdul reparou.

- Se precisa de alguma coisa, faz favor de dizer. - informou, num tom de voz amistoso. E prosseguiu. - Uma não, três. As voltas que o mundo dá, para eu lhe vir parar às mãos depois de séculos sem um chamamento. O amigo Ernesto está cheio de sorte, hã?

O "amigo" gelou. Como é que o mastodonte sabia o seu nome? Vinha raptá-lo, de certeza, para lhe extorquir as poupanças. Concebera decerto um plano genial, mas não contava com resistência e estava a dar-lhe a volta com falinhas mansas. Não queria mais nada, o camafeu. Mas o outro insistia:

- Esteja à vontade, amigo Ernesto, estou aqui para ajudar. E o mais difícil está feito, só falta um pormenor. Coisinha de nada...

Apoiado na mesa da cozinha, o anfitrião esforçava-se para não desfalecer. Lívido como um cadáver, esquematizava mil e uma formas de escapar à ameaça, transpirava. Mal olhava para o invasor que catalogara como hostil. Lutava pela sobrevivência.

Abdul denotava alguma impaciência perante tanta cerimónia. Todavia, empenhou-se em facilitar a tarefa ao homenzinho:

- Olhe lá, isto não tem nada que saber. Eu já estou aqui, posso conceder-lhe os tais três desejos, mas preciso de obedecer a determinados critérios. Instruções vindas de cima, não sei se está a ver?

E apontava para o céu, mas o senhor Ernesto não o seguia com o olhar, receoso de uma armadilha.

Paciente, o génio não desistia.

- Concentre-se, amigo Ernesto, é só uma condição e tudo o que quiser será seu. Em triplicado. E livre de tributação! - Terminou com uma sonora gargalhada, bem disposto.

O senhor Ernesto ainda urdia uma complexa estratégia paramilitar. Filmes de acção que lhe desfilavam na cabeça em versão reduzida. Só pensava no final feliz, com o bom da fita, o duro, a aniquilar legiões de bandidagem com golpes certeiros de kung-fu. Abdul interrompeu-lhe a matiné, a longa metragem de terror que o fulano desencadeara como reacção instintiva ao pânico que o dominou.

- Ó chefe, eu tenho mais o que fazer. Quer fazer os pedidos ou não? Mas tem que estar atento aos sinais. - Aqui, sorriu de orelha a orelha, arreganhou a dentuça sem jeito nenhum. - É que falta cumprir um desígnio e contra isso nada posso fazer. Tenha em conta que na ausência de uma conjuntura que me permita cumprir a função terei que o penalizar...

Ameaças! O gigante já estava com ameaças. A situação descontrolava-se a cada minuto e o senhor Ernesto não reagia. Preparou-se para o pior.

Instalou-se um silêncio pesado na cozinha. Por pouco tempo. Saturado, o génio decidiu aplicar a norma vigente naquelas raras e frustrantes condições.

- É com o maior desgosto que o informo do facto de ter esbanjado uma oportunidade impar na sua existência e na da esmagadora maioria dos mortais. E digo-o com a maior sinceridade, a condição que lhe calhou até era das mais favoráveis. Estou muito desiludido consigo, amigo Ernesto.

O visado estava cada vez mais a leste da realidade, confuso com tudo aquilo. O tal Abdul era um tipo habilidoso, quase o persuadia com a manha. Mas o discurso é que o traía, qual génio, qual carapuça! Podia lá ser. Abdul continuou:

- Assim sendo, vou proceder ao encerramento formal do peditório e aplicar-lhe o preceituado no Manual. Em lugar de três desejos humanamente impossíveis de obter, conceder-lhe-ei apenas um. Precisamente o mais comezinho que me transmitir neste preciso momento. Na segunda gaveta da cómoda, encontrará um papiro onde constará a condição que não foi respeitada mais a tradução do rótulo da lanterna. Aproveito para referir que se trata da mesma frase que ouviu da boca de um andrajoso magrebino, tempos atrás. E de seguida irei desaparecer numa cortina de fumo até alguém me despertar da letargia outra vez!

Alguma fumarada depois, Abdul sumiu. E levou consigo a lanterna, o que muniu o senhor Ernesto de um móbil do crime, quando a polícia apareceu. Nem quando o agente da autoridade, divertido, o interrogou acerca do cumprimento do tal desejo menor o senhor Ernesto se desmanchou:

- Urinei pelas calças abaixo quando ele desapareceu, é verdade. Mas também, com o cagaço que eu apanhei não era preciso um génio para adivinhar esse desfecho...

Só à noite recordou que se esquecera de referir o pormenor do papiro, para constar no depoimento. Por curiosidade, abriu a segunda gaveta da cómoda. Recuou sobressaltado quando se deparou com a folha amarelecida, letras gravadas a ouro em bom português. Leu o que nela constava, deslizou pela parede e deitou-se na passadeira do quarto a chorar.

A praga do árabe era seca e curta. "Pode ser que um dia te trames com esse mau feitio...". Mas o que arrasou o senhor Ernesto foi a condição desvendada. A receita para a obtenção dos três desejos resumia-se noutras tantas palavras, igualmente esclarecedoras.

Para lhe serem atendidas as mais exorbitantes exigências, ao candidato teria bastado satisfazer uma simples contrapartida que competia ao génio vislumbrar-lhe no rosto, nem que por segundos.

"Um sorriso simpático".

Isso é que lhe deu cabo do dia...

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