AMOR DE CARNAVAL
Fernando Zocca

Naquele ano a segunda-feira de carnaval caiu no dia onze de fevereiro. O bairro estava quieto logo depois das oito da noite. Meu pai dormia embriagado como sempre. No chão do corredor inúmeras pontas de cigarro indicavam o consumo exagerado desse produto, bem como evidenciava a má vontade da minha mãe de estar varrendo o chão a toda hora. Ela apesar das caminhadas matinais entre o arvoredo vizinho, não conseguia perder peso. Alguns médicos atribuíam aquela gordura irredutível a histerectomia a que se submetera há alguns anos.

Apesar de seguir inclusive conselhos de espíritos de luz que incorporavam em médiuns respeitáveis, não lograva êxito no seu objetivo. O endocrinologista dissera-lhe que deveria comer bem menos e praticar mais atividade física de tal forma que o cansaço e as dores causadas pelo movimento se incumbissem de queimar os excessos gordurosos.

Na televisão os bailes carnavalescos, entrevistas e até os comerciais referiam-se ao evento, de forma que eu não podendo sentir prazer com aquela barulheira toda, achava refúgio na calçada, onde ficava por horas e horas. Naquela noite a brisa refrescava prazerosamente de modo que as demais pessoas da comunidade também se encontravam nas calçadas fronteiriças de suas casas, aproveitando o tempo sem o movimento exagerado de automóveis. Logo depois que cheguei ao portão, a mocinha também adolescente que morava, naquela ocasião duas casas acima da minha, aproximou-se de mim e perguntando se eu não ia ver o cordão, sentou-se ao meu lado.

Pusemo-nos a conversar e logo em seguida minha mãe também se achegou a nós. Veio dizendo que tivera um sonho. A menina soubera por intermédio de uma sua tia que os sonhos são vidas que se vivem em outros planos de forma que se pode muito bem saber de que jeito será nossa vida se soubermos interpretar o devaneio.

Minha mãe que já desacreditava nessa lengalenga herege, com um muxoxo, nem atenção deu à minha coleguinha.

Para que aqueles minutos desagradáveis que se seguiram não perdurassem por tanto tempo, achei que deveria contar uma piada sobre religião. Mas minha mãe, com o seu mau humor perene, prontamente interrompeu-me dizendo que com isso não se devia mexer.

Minha colega me disse que tinha um tio e uma tia que praticavam esse tipo de coisa e que na casa deles freqüentemente ocorriam sessões de incorporação e doutrinação dos espíritos cabeçudos, isto é daqueles que não se conformavam com o que a vida lhes apresentava.

Meu pai gritou lá de dentro. Queria saber onde estava a garrafa de cerveja gelada. Minha velhota amuada e resmungando contra esse hábito condenável, deixou-nos a sós.

Minha garota perguntou-me se meu pai já havia sido internado em decorrência desse vício. Eu disse-lhe que sim. Que fora internado num hospital espírita e que ele saíra bem pior do que entrara. Isto é, o seu aspecto físico era horrível. Estava inchado e perdera a habilidade para comunicar-se. Na verdade o que aquelas pessoas faziam naquele local que estranhamente chamavam de hospital, não passava de tortura e violência contra os pobres doentes indefesos.

Repentinamente minha primeira namorada deu-me um beijo no rosto e afastou-se de mim. Dizendo que iria esperar um certo primo seu que a levaria para o baile carnavalesco, deixou-me sozinho com os meus pensamentos e angústias. Voltei para onde estavam os meus pais, que numa nuvem de álcool punham-se a discutir sobre a temperatura da cerveja. Ela deveria estar estupidamente gelada, fato que não ocorria.

A banha de minha mãe sacudia e balançava muito quando, ao receber as palavras agressivas do meu pai, soluçava dolorosamente, naquele drama que não tinha fim.

Foi um dos piores carnavais da minha vida. Foi uma das piores quartas-feiras que viví.

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