CINZAS...
Sonia Lencione

- Pai, mas amanhã já é quarta-feira, você não entende?

- Eu sei que amanhã é quarta-feira.

- Pai, eu lhe pedi todos estes dias e você não me deixou ir. Deixa hoje pai, amanhã já termina o carnaval e eu queria tanto...

- Virão outros carnavais, minha filha. Desta vez você não vai.

- É que eu queria tanto pai...

- Você ainda não está bem para ir a um baile.

- Pai... amanhã é quarta-feira de cinzas...

Eu o conhecia bem, sabia que quando dizia "não" era não. Mesmo assim insisti.

Ele não cederia. No fundo eu sabia que ele não cederia.

Sabia que nem devia estar chorando. Eu tinha dezoito anos, mas desejava tanto conhecer um salão de baile. Desejava tanto estar lá dentro, ver de perto tudo aquilo.

Sabia que não podia dançar, pular...

Eu só queria ver tudo, ser uma espectadora.

Eu via os desfiles de escolas de samba nas ruas, mas queria estar dentro de um salão. Imaginava que existia um encanto especial dentro dos salões de bailes.

Mas ele não me deixara ir e a quarta-feira de cinzas chegaria logo. Tudo acabado. Que frustração!

Minha mãe veio fazer-me um agrado e tentar me convencer a ir para a cama.

- Deixa de chorar menina. Que bobagem, chorar por uma coisa destas! Nem parece uma moça...

- Mas mãe, amanhã já terá acabado o carnaval e eu queria tanto...

Ela me abraçou tentando me convencer a ir deitar, mas no fundo ela sabia que de nada adiantaria. Eu esperaria a quarta-feira ali mesmo.

Sentada naquela cadeira da cozinha onde costumava ficar quando não agüentava a realidade. Olhando o fogo no velho fogão de lenha. Logo aquelas brasas se transformariam em cinzas, cinzas como quarta-feira, cinzas como meus sonhos desfeitos...

Eu só estava querendo ser jovem, me divertir, recuperar o tempo perdido depois daqueles anos doente.

Por que meu pai não conseguia entender que eu nunca mais teria dezoito anos, que eu só estava desejando ir a um baile de carnaval?

Fiquei horas ali sentada na minha cadeira predileta, abraçando minhas pernas que ansiavam por caminhos depois de tanto tempo impotentes.

Elas ainda não estavam preparadas para dançar, mas já conseguiam me levar até o salão.

Emburrada eu esperei a quarta-feira nascer olhando as brasas virarem cinzas. Quando o relógio de parede bateu meia-noite resolvi me deitar. Já havia acabado mesmo o carnaval. Meu choro de nada adiantara.

Não consegui entender naquela noite e na verdade demorou um tempo enorme para que eu compreendesse que meu pai só estava querendo me proteger. Ele tinha todos os motivos para se preocupar comigo. Eu estivera por longo tempo doente e estava frágil, mas que foi difícil aceitar aquele "não" de papai, ó como foi!

Nunca consegui esquecer aquele carnaval e aquela quarta-feira que vi nascer por entre lágrimas.

Quando conheci um salão no ano seguinte não senti o prazer que imaginava que sentiria e descobri que nem gostava tanto de carnaval.

Penso se teria sido diferente se tivesse ido naquele ano...

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