NÃO SEI QUÊ ACONTECEU
Ana Terra

Aconteceu.

Um toque quente nas minhas mãos. Música ao longe. Encaixo meu corpo em outro e danço. Gosto de champagne na boca. Dois corpos no mesmo compasso. Não consigo ver o rosto da criatura. Encosto minha cabeça em seu ombro e me deixo levar. Aos poucos, desapareço. Sou apenas sensações num desejo crescente. Rodopio, as luzes se acendem e a criatura desaparece no ar. O champagne amarga a língua. Gosto de decepção. De algo inacabado. Estou só na sala. Deito-me no chão. Olho para cima e vejo uma roda gigante girando muito rápido. Todas as suas cadeiras estão ocupadas. A criatura está em todos os bancos. Em cada um, de uma forma diferente. A rapidez é tão grande que não consigo captar nenhuma delas. Como flashes, passam diante de meus olhos uma criança recém nascida, ainda com o cordão umbilical, sorrindo com sua boca desdentada. Uma criatura molhada de suor e suja de poeira andando tristemente num chão árido. Barulho de pás tentando achar alguns grãos de terra para plantar. Canções antigas são entoadas. Lendas de Malba Tahan bem baixinho, no meu ouvido. Risadas marotas. Tantas numa uma só. Faces diversas. Quero segurar apenas uma. Apenas uma, mas não consigo. "A Criança Morta" de Cândido Portinari é jogada diante de meus olhos. Choro e sou abraçada pela criatura. Sinto sua cumplicidade. Mas novamente ela desaparece. Saio do museu correndo, enxugando as lágrimas na manga da blusa. Na rua, no meio da multidão, procuro a criatura inutilmente. Quero sumir dali. Encontro um buraco e vejo que estou num elevador. Num andar qualquer, abro a porta e vejo que ali ela está. Mesmo estando próxima, não consigo ver sua expressão. Uma alegria imensa me invade, fecho os olhos e levito em sua direção. Seus braços me envolvem. Sentimentos confusos e uma paz imensa. Quero e preciso ver o rosto desta criatura, mas não consigo. Pelo calor, encontro suas mãos. Seguro-as entre as minhas. Consigo ver claramente sua brancura, sua textura, sua delicadeza. Mãos feitas para escrever poemas e fazer amor. Levanto os olhos à procura dos dela e vejo uma enorme geleira. Dos trópicos à Patagônia, em segundos. Para meu espanto, a geleira tinha olhos. Negros, sem brilho, um oceano de dor. Nele mergulho com tanta intensidade, que chego na região abissal. Com a visão turva pela falta de luz mal consigo ver seres que ali habitam. Percebo que são de todas as formas. Bonitos, exóticos, misteriosos, delicados, coloridos, medrosos, agressivos, dóceis. Uns ignoram minha presença e outros sorriem para mim. A profundidade me dá desespero. Com as forças que me restam, me impulsiono para a superfície. Vi que me transformei numa onda que nasceu na linha do horizonte. Quando chego à altura que minhas forças permitem, no meio da imensidão do mar, um pedaço de arco-íris. Com cores translúcidas. Não consigo defini-las. A onda em que me transformei perde o vigor e despenca com um estrondo na praia. Sou sugada pela areia. Enfim, a paz. Mas, a dança ainda não acabou...

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