CORAÇÃO DE CAÇADOR
Luís Valise

 
 

O indicador brincava com as pedras de gelo douradas pelo uísque. Examinou as unhas recém-cortadas e lixadas. Os dedos da mão direita estavam amarelados pelo cigarro. Sorriu para o inevitável e acendeu mais um. O primeiro gole no uísque desenhou-lhe no rosto uma careta mentirosa de desprazer. O ar condicionado era um desacato aos que andavam apressados na rua, sob o sol que derretia o asfalto. Mantinha os óculos escuros como escudos que ocultavam a ansiedade que sentia antes que ela chegasse. Depois, sabia, seriam olhos de adoração. Surpreendeu-se com a firmeza da própria voz ao pedir mais uma dose.

Viu quando o Volvo verde-escuro virou a esquina numa curva bem aberta, deslizando suave até parar defronte a porta envidraçada. O porteiro já estava a postos para abrir a porta do motorista, e mais uma vez ela surgiu. Como sempre, como nunca, como só ela sabia fazer. Entrou no Bar e caminhou entre as mesas até chegar aonde ele estava. Todos os olhares seguiam o vestido de seda (debaixo desse angu tem caroço!). Abriu o sorriso de Diva e perguntou, como se não soubesse: - Demorei? Ele pensou responder: - Minha vida inteira. Achou exagerado, e disse apenas: - Não, só começa quando você chega, mesmo... Ela gostava da brincadeira: - Está bem, pode voltar a respirar! Estendeu a mão para um cumprimento. Ele levou-a até sua boca para um beijo, resistiu à tentação de meter a língua por entre aqueles dedos. Só beijou, mesmo. Sentada à sua frente, tirou os óculos de sol e as pedras de gelo do uísque pareceram derreter mais depressa.

A unha vermelha traçava círculos coruscantes no dorso da sua mão. Por duas vezes ele errara de copo e dera uns goles no champanhe. Na hora de sair beijou de leve a nuca da mulher, que sussurrou: - Não prometa o que você não poderá cumprir... Ele aceitou o volante do carro. Nunca havia dirigido um desses. Nem de longe. A mão da mulher pousou em sua perna, apertando sua coxa, tesando a firmeza. Ela ensinava o caminho. A estrada de curvas sinuosas mergulhava dentro da noite. A máquina rugia baixinho, os cavalos-de-força galopando dentro do coração. A casa de campo surgiu no alto de uma colina. Um caminho de pedras por entre um jardim bem cuidado. Ele carregou as malas, ela abriu a porta e os braços: - Entre e fique à vontade. Dispensei os empregados.

Os seios, as coxas, a boca, o mundo.

Nus, deitados sobre o tapete macio ao lado da lareira, dividiam o mesmo cigarro. O silêncio calmo, a paz em volta; havia sido bom. Para a mulher isso não bastava, e ela teve que perguntar: - Do que você mais gosta em mim?

E ele, protegendo o coração: - Desse seu jeito de "não sei quê..."

 
 

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