TERRAS RASAS
Paffomiloff

Joe Harper pedalava sobre o mar multicolorido de folhas secas, que estalavam e pulverizavam-se em nuvens hipnóticas. Os fragmentos traziam a suave fragrância do outono, e grudavam-se no uniforme de veludo azul do menino, mimetizando-o ao cenário.

Estava miseravelmente atrasado para sua aula semanal.

Não conseguia sentir-se infeliz pois este sentimento é impossível numa manhã de outono naquela vila perdida da nascente do Yann.

Os muros vivos do Colégio Dunsany eram plantados com quebrantos, para impedir que seres invisíveis se aventurassem nos limites da antiga instituição, e perturbassem o aprendizado dos pequenos. Adicionalmente Lorde Dunsany mandara fundir poderosos portais em ferro, e deixara-os por longos anos imersos no mar distante, onde o metal foi sendo substituído por coral vivo.

Já haviam soado os sinos dourados que cerravam a entrada dos alunos, quando Harper chegou diante do colégio. A supervisora veio regar as grades vivas com água salgada e plâncton.

- Oh! Joe Harper, atrasado para variar! - Resmungou ela, levantando-o sobre a cerca, com bicicleta e tudo.

- Desculpe, senhorita Bertha.

A força da supervisora era desproporcional ao seu corpo bem proporcionado. Alguns alunos souberam, por fontes fidedignas, que ela já matara um deus.

- Não posso perdoá-lo, pois está me atrasando também. Ainda tenho de regar os corais, e a carroça que vende o tahine vai passar já. Lady Dunsany pediu-me para comprar um pote. Vamos! Anda!

As folhas de grama se afastaram para que ambos passassem sem maior esforço.

Seguindo as especificações de Dunsany, que acreditava que o ensino estava acima das coisas mundanas, as salas de aula encontravam-se todas no segundo andar, afastadas do solo por soberbos arcos de granito, cobertos de heras e trepadeiras floridas.

Uma das funções de Bertha era de controlar a pesada escada de marfim, pela qual os alunos acessariam o templo do saber. Antes, porém, a supervisora deveria preencher a papelada referente ao atraso do menino.

A Mesa da Burocracia ficava ao ar livre, de forma que o vento matinal balançasse as flores sobre as gavetas, que seriam fechadas para as férias invernais. Quando fossem abertas, no fim do inverno, ainda guardariam o cheiro do outono.

Ouviram o assobio, com o qual o vendedor de Tahine anunciava sua presença.

Bertha olhou furiosa para o menino:

- Vou perder o Tahine, por sua causa.

- Tenho uma proposta - adiantou-se Joe Harper - a senhorita deixa-me subir sem registro de atraso, e eu lhe empresto minha bicicleta.

- Seu pestinha! - anuiu Bertha - Não tenho escolha, nem tempo de pegar a escada.

Ela guardou os papéis no meio das pétalas que a gaveta recolhera ao vento, e segurou o menino pela cintura. Com um único movimento de braços, jogou-o sentado na varanda do segundo andar.

Esfregando as nádegas doloridas, Joe harper ainda conseguiu ver a supervisora montada na bicicleta, disparando feito uma flecha de fogo através das campinas, incinerando o ar a sua volta.

A estrada de terra batida seguia para o norte, separando os muros do colégio Dunsany do declive gramado que conduzia às margens do Yann.

Instalado em sua carruagem de seis cavalos, o vendedor de tahine mascava tranqüilamente o seu tabaco, quando viu um braço feminino entrar pela janela, brandindo uma moeda de ouro:

- Um frasco de Tahine, por obséquio - gritou uma voz enérgica.

Acostumado que estava ao inusitado, que é o cotidiano às margens do Yan, o vendedor apanhou a moeda e depositou a mercadoria entre os dedos da mão misteriosa, que desapareceu da mesma forma que surgira.

Lá ficou Bertha, ofegante, vendo a parelha afastar-se num torvelinho de poeira vermelha. Guardou o frasco na dobra do vestido, olhou para as águas calmas e luminosas, onde as crianças brincavam. Algumas pessoas chamaram-na, para partilhar do clima onírico.

Deixando a bicicleta junto a uma árvore, tirou os sapatos e correu pela encosta, escorregando deliciosamente sobre a grama morna, e aspirando o ar fulgurante do entardecer outonal.

Um rapaz, de costume branco e chapéu de palha, ofereceu-lhe um buquê de orquídeas, e ela agradeceu com um sorriso sem preço.

Bertha caminhou lentamente para a margem e sorveu, com a mão em concha, as doces águas do sonho e do esquecimento.

Longe, muito além da lembrança de supervisora, os alunos negociaram, com os professores, notas melhores. Em troca, desceriam pelas trepadeiras para trazer a escada, pois os sinos que abririam os portais de coral já vibravam sua sinfonia.

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