DOIS POR UM, OU O SEU AVESSO
May Parreira e Ferreira

Suave preguiça que, do malquerer
E de tolices mil, ao abrigo nos pões. . .
Por tua causa, quantas más ações
Deixei de cometer!
(Mário Quintana - Da preguiça como método de trabalho)

Caso fosse possível, se minha atenção permitisse, mas distraída que sou e mais, pensando em nada que a gente pensa quando está em férias, e pronto, tenho que o texto não saiu a tempo de pegar a barca. Mas estando-se ao mar, os remos arranjam-se depois. Então, emendo um texto ao outro, e cá está feito o remendo. A preguiça foi tanta que acabei por fazer dois por um, ou o seu avesso.

Estou passando alguns dias de férias na fazenda de amigos, à margem esquerda do Rio Paraíba, nordeste do estado de São Paulo. Paisagem diferente, a densidade da Mata Atlântica, o vale, as montanhas. E o rio, caudaloso, generoso. Despertador desligado, não consigo acordar cedo, porque o galo, gentil com os hóspedes, canta depois das nove. O dia passa esgarçado. Fim de tarde, o anoitecer já próximo, uma brisa quase fria, batendo nos galhos dos eucaliptos. Ouço uma única música possível com a mansidão do meu entorno. De todos os aromas o mundo é feito, e de todas as cores e todos os sons. Não quero pensar em noticiários sobre violências, sobre a má atuação de nossos políticos, sobre os vencedores do big brother, os tenho todos às mãos, no controle da tv, mas os ignoro. Sei que a caravana passa com ou sem os cães que ladram. Estou deliciando-me com a vida do homem comum da terra. Como é doce o non far niente, quando se tem o mundo para desvendar. Saímos montando cavalos sadios, meio do pasto, capim farto. Os animais vigorosos seguem a trilha sem duvidar dos instintos. Existe uma sintonia entre cavaleiro e cavalo, que nos remete a tempos ancestrais. Vou ao pomar, corto verduras fresquinhas para a salada. Meus pés, esquecidos sobre um formigueiro, fazem-me lembrar que a vida é também ardida. Nas águas do rio deixamos nossas mágoas, pedras roliças massageando solas calejadas por sapatos citadinos. O sons, diversos dos da metrópole, nos embalam na preguiça do fim de tarde. O vinho nos sabe tão bem ao corpo quanto à alma. As galinhas d'Angola com seu cacarejo entrecortado nos distraem num bailado ritmado enquanto não dão um instante de sossego aos insetos do gramado, insetos esses, únicos destituídos de preguiça na fuga de bicos gulosos. As camas cobertas por alvíssimos lençóis de cambraia de linho. Quem já dormiu em camas assim arrumadas, sabe do que estou a dizer. E então desperto de um sono bem dormido, abro as cortinas transparentes, escancaro as janelas e volto para a cama. Vou fazer preguiça até mais tarde, quando o galo estiver um tanto rouco e o sol já estiver do outro lado da montanha. E quando tudo descansa, posso ouvir o barulho do capim crescendo. Começo a escrever com muita suavidade, para que nada atrapalhe a natureza em seu curso. Ah! se eu pudesse fazer deste, o meu método de trabalho.

- e a vida vai andando, cambaia, como se levasse um prego no tacão e uma invencível preguiça de o arrancar - José Saramago - A bagagem do viajante.

fale com a autora

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.