SÓ REZANDO MUITO
Ubirajara Varela

O garoto entra pela porta dos fundos, passando apressado pela mãe, que estava na cozinha a preparar o almoço.

-Ô menino, aonde vai com tamanha pressa?

-Vou resolver uns assuntos pendentes...

-Peraí. Vem cá.

-Oi?!

-Que conversa besta é essa de assuntos pendentes? Você não deveria estar na igreja com o padre?

-É. Exatamente sobre isso. Só que eu resolvi comungar com o Cristo em casa dessa vez.

-Por quê?

-Não é nada, não.

-Fala...

-Ah, mãe. É que o padre vem com aquela história de comungar, comungar, comungar. Pergunta se eu comunguei, digo que sim, e me enche de penitência. Nunca vi!

-Que tipo de penitência? Você não está aprontando, está?

-Não, mãe. Lógico que não. Sou um santo!

-Você?! Sei. Hã!

-O negócio é que se eu não faço as tarefas que ele me dá direito, ele me manda tirar a roupa, ajoelhar e rezar ali mesmo na sacristia... E fica me olhando com uma cara esquisita, um sorriso bobo, com a mão por debaixo da batina.

-Como assim?

-Não entendo muito bem esse padre, mãe. Tem umas brincadeiras estranhas. Fala que quer me fazer coroinha, mas pede pra eu vestir roupa de noiva. Aí, quer celebrar matrimônio e ser o noivo ao mesmo tempo. Ele disse que adora a hora do beijo. Depois, vem me pedir opinião sobre o sermão. Se eu digo alguma coisa que ele não gosta, e ele nunca gosta do que eu digo, ele me enche de penitência.

-Ô menino, você tá inventando... Falar do padre assim é sério. Muito sério, aliás.

-É verdade, mãe. Ele já até pediu pra gente rezar junto, só que sem roupa, deitados em cima da batina. Eu acho que ele é meio doido. Os garotos lá da escola falaram que rezam freqüentemente desse jeito. Dizem que o padre dá dinheiro das esmolas pra eles, quando fazem as orações direitinho.

A mãe chama o marido:

-Ô Sebastião, vem cá.

-Que foi, mulher?

-O padre tá bolinando o nosso garoto.

-O nosso também?

-Como "também"? Você já sabia disso?

-O povo tá comentando umas coisas... Estão falando que o padre não presta, não leva a sério os preceitos de Deus. Chamam-no mau-caráter. Pedófilo, ou sei lá o quê. Até uma lista abaixo-assinado tem pra tirá-lo dessa paróquia.

-Tô boba. A gente acha que isso não existe. Coisa de televisão pra desmoralizar a bendita Igreja. Aí...

-É. Errar uma vez, até que dava pra passar. O sujeito não tem mulher, nem pode ter. A gente entenderia. Daria um desconto. Mas insistir no erro. E pior: com o nosso guri! Vou lá falar com ele agorinha mesmo.

-Isso. Toma uma atitude.

Voltando do encontro:

-E aí, Tião. Como foi lá com o padreco safado?

-Ah... Eu reclamei, né. Aí ele me falou que era um absurdo, um sacrilégio, logo com ele, um homem de Deus. Mandou eu voltar pra casa rapidinho e rezar trezentos pais-nossos.

-Ave Maria, homem!

-Também. Seiscentas.

fale com o autor

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.