FANTASMA SOBRE RODAS
Fábio Luiz

Os fantasmas são incríveis. Eles estão entre nós e nem mesmo os vemos. Podem nos dar um susto ao aparecer de repente como um raio despedaçando uma imensa árvore. Atravessam as paredes e não podemos agarrá-los. Surgem nas noites em que pensamos que tudo vai bem e nos tiram o sono. Algumas pessoas mais preparadas os vêem, conversam com eles e, acreditam em sua existência em detrimento a opinião da maioria.

Certo? Pelo menos serve como teoria ou introdução para algo do gênero de terror. Mas, alguns destes entes fantásticos, embora caibam na descrição acima, não são os que costumamos chamar de fantasmas. Os tratamos como tais.

Ontem fui até o fisioterapeuta acompanhando minha mãe que faz tratamento. Enquanto aguardava o término de sua sessão, escutava uma música e lia "A última grande lição" de Mitch Albon sobre os derradeiros ensinamentos de seu adorado professor às portas da morte, mostrando que o importante é amar. A música acabou, ou melhor, as pilhas do aparelho. Enquanto guardava os fones ouvi um ruído como o guinchar de ratos continuamente. 

Não eram ratos. Era uma senhora em sua cadeira de rodas. Pela semelhança dos traços notei que sua filha empurrava a cadeira até o banheiro para ajudá-la. Talvez, por influência do que lia, acompanhei-a com o olhar discretamente. Sua perna machucada e inchada não a permitia andar por sua própria vontade. Percebi que as poucas pessoas que estavam na sala de espera baixaram o olhar evitando até o menor contato. Isso tudo passou pela minha cabeça enquanto a via sumir pelo corredor. Após alguns minutos, entretido novamente com o livro, ouço o leve guinchar das rodas retornando à sala.

Colocaram-se próximas ao guichê de atendimento. Sua filha olhava para o relógio repetidas vezes, arrumava a bolsa e tamborilava seus dedos no mármore, aguardando impacientemente ser atendida. Provavelmente tinha muitas coisas a fazer e ficar na espera não estava nos seus planos. A senhora fitava a parede quase sem piscar. Silenciosamente, respirava calmamente com os braços cruzados sobre um livro em suas pernas.

Aquela visão, não me perguntem porque, prendeu-me a atenção. Virei para as pessoas sentadas na mesma salinha e via que eu era o único que apreciava aquele momento. Alguns liam suas revistas, coçavam seus corpos e, o mais incrível para mim, não viam a senhora à sua frente. Ela estava invisível. O fantasma de cabelos brancos estava entre nós naquele instante e passava por todos sem ser notada.

Sua filha finalmente começou a ser atendida e pelo visto não estava indo de acordo com o esperado. Gesticulava e exigia a presença da responsável pelo setor de terapia. A atendente, contrariada, foi chamar sua superior que prontamente começou a explicar que deveria ter sido marcada a consulta anteriormente. A filha pouco se importava com os detalhes, e já com voz alterada dizia que o seu tempo corrido não lhe permitia cuidar de burocracias e se não tomassem providências ia fazer um escândalo. Não imagino o que seria, para ela, a atenção que trazia para si naquela hora.

Corri novamente o olhar pela sala e algumas pessoas viam o show, agora interessados pela bagunça divertida. Não muito, afinal, não era com eles e não lhes dizia respeito.

Tornei minha cabeça na direção da filha aos brados e, espantado, olhei para sua mãe que me encarava intensamente. Senti-me mal por ter olhado tanto para ela e agora era alvo de atenção. Sem graça tentei desviar o olhar me sentindo mais idiota ainda. Eu tinha sido inconveniente não cuidando de mim mesmo e invadindo a privacidade de sua vida. Acabei por a olhar com um sorriso meio torto. Recebi de volta um olhar doce e sereno. Sorria para mim e olhava para todos na sala que não a notavam e sim sua filha gesticulando.

Ela piscou, sorrindo divertida. Ela e eu assistíamos ao show dos outros que não nos notavam. Sua filha conseguiu o que queria e as duas se acomodaram perto de mim aguardando serem chamadas. Ela serena e sua filha mexendo em seu celular. Minha mãe, finalmente, saiu de sua sessão e me chamou para sairmos da clínica. Ia me levantar quando a senhora segurou minha mão dizendo:

- É um bom livro? Ou a vida é ainda uma leitura melhor?

- É um ótimo livro... - Comecei a responder sorrindo.

- Eu também acho. Mas parece que ambos preferiram ver os outros exemplares da enciclopédia da vida! - interrompeu-me acenando com a cabeça para minha mãe que sorria como sempre. - Tenham uma boa tarde.

Deixou-me ver o livro em seu colo que era o mesmo que o meu. Sorri e me despedi. Caminhando em direção a porta ouvi sua filha dizer sem tirar os olhos do celular:

- Que mania mãe! Ta falando sozinha de novo? Depois te chamam de maluca e não sabe porquê.

Minha amiga-fantasma olhou para mim e piscou de novo. Todos podemos ser fantasmas. Alguns nos vêem e outros nem notam que passamos pelas suas vidas. Talvez porque não nos mostremos a todos. Afinal, quem é fantasma de quem?

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