MUITO ALÉM DA CAMARINHA
Fernando Borba

Às cinco horas da manhã, quando os galos da redondeza encerravam os cantos, Sabina empurrou a porta da sala de jantar e entrou, ciscando com os pés a pucumã caída do telhado durante o mês inteiro. Era primeira-sexta-feira, dia de passar-o-dia na casa, e como sempre fazia sem qualquer sucesso, apanhou a vassoura e pôs-se a varrer.

Era uma casa de oitão livre bem largo à esquerda, antiga passagem dos cabriolés. A cocheira arruinada servia de depósito, ao lado da fieira de quartos que tinham sido dos escravos. Chico e Amaro sempre dormiram ali, mas Sabina, Santana e Maria da Penha, também crias da casa porém donzelas, dormiam nos quartos de dentro. Os senhores ocupavam os aposentos nobres, de um lado e outro do corredor. O quintal estendia-se com fruteiras, horta de legumes, cacimba. Sabina contemplou aquelas ruínas abandonadas, sentiu uma oura, apoiou-se na parede e fechou os olhos. A casa começava a reviver de novo: como fazia sempre àquela hora, Alquíndar surgiu no avarandado e deitou na rede.

"Tota está atrasado", falou. "Desse jeito não vai achar coisa que preste". "Tota! Levanta, homem!" gritou, procurando fazer-se ouvir através das janelas de reixas.

"Oxente, Seu Quinda. Quer assustar o povo?" reclamou Sabina.

"É que já é tarde. Hoje o Mercado de São José vai estar assim de gente" - o velho traçou uma sobre a outra as abas do paletó do pijama. - "Tem de escolher o camarão, a lagosta, pegar um bom peixe, as ostras frescas."

Nesse momento surgiram da sala Maroquinha e Isolina, que Tota e Alquíndar chamavam 'as meninas'. De mantilha na cabeça e xale pelos ombros, atravessaram o avarandado e partiram para a igreja. No passinho miúdo, iam ruminando a rivalidade que amanhecera mais forte. Sabiam que aquela sexta-feira santa e o sábado de aleluia seriam decisivos para a conquista de Alquíndar. Pensativas, planejavam as táticas de sedução e revisavam os trunfos de que dispunham para atraí-lo. Seguiam mudas, braços cruzados, batendo os sapatos nas pedras dos becos. Chegaram à Igreja de São José, fizeram o pelo-sinal com a água benta da pia de calcário e reverenciaram as imagens envoltas nos panos roxos da Quaresma. Isolina foi abater-se num dos primeiros bancos. Maroquinha juntou-se ao coro de velhas que cantavam o Queremos Deus em volta da serafina.

Eram gêmeas. Alquíndar, o primo e cunhado (fora casado com Fifina, a mana mais velha) conservara-as depois da viuvez num suspense, sem decidir pela escolha esperada e fazendo-as esperar durante décadas. Morreu viúvo deixando as cunhadas virgens, e elas agora voltavam do passado com a mesma emulação sensual, em que os dias festivos assinalavam batalhas. Marcas da guerra: Isolina evocava um certo sarapatel gordo, escuro, picante... Maroquinha lembrava um fantástico peru de natal estufado pela farofa de miúdos, e a visão de Alquíndar com o lábio trêmulo e o olhar rutilante. As meninas tentavam se concentrar no ritual do ofício, mas a expectativa era mais forte. Quando voltassem para casa...

Em casa, na hora do aperitivo, Alquíndar e Tota estavam de conversa, sentados à mesa da cozinha. Sobre os tabuões escuros, um alguidar cheios de camarões fritos no alho e azeite. Ao lado, a garrafa de laranjinha, receita velha da família: aguardente de cana com casquinhas de laranja e uma pitada de cravo da índia, deixada curtir durante meses.

As meninas aprontavam o almoço, com a assistência das crias da casa. Manejavam as tigelas com postas de peixe, camarões vilafranca, lagostas cozidas, ostras vivas sendo abertas e lavadas no caldo de limões, talhadas de bacalhau aferventando no fogão. Amaro, num vão de porta, sentado no tamborete e com a perna direita em cima do rapa-coco, ralava com ritmo. As quengas vazias empilhavam-se. O alguidar, no chão, ia se enchendo com a raspa branquinha.

No quintal, Chico assava castanhas de caju para o vatapá. Sobre um fogaréu de lenha, entre quatro tijolos, a chapa de lata perfurada com dúzias de castanhas - de repente o fogo assaltava os frutos, o ácido explodia, espirravam labaredas. O cheiro gostoso do assamento invadiu a cozinha. Tota lembrou-se de recontar uma história da família:

"Nossa bisavó Nôzinha, quando era sinhá de engenho em Gameleira, tinha um preto velho de Nação Angola muito bom cozinheiro"- Alquíndar, que devorava um pitu entre goladas de laranjninha, não interrompeu o serviço mas ouviu atento a narrativa. Gostava de Tota, primo longínquo e aderente da casa desde meninote, quando toda sua família morrera de intoxicação alimentar numa festa de Reis. -"Negro ladino, mão de ouro" prosseguiu o aderente. - "Ele fazia o vatapá com farinha de mandioca, castanhas assadas, camarões (tinha do guisado e do bem queimado, pilado no pilão), leite de coco, cabeça de traíra passada na urupema. Para temperar, gengibre, quitoco, semente de embira, dendê e pimenta malagueta."

Sabina ouvia com os ouvidos da alma aquelas conversas antigas e seus olhos marejavam. Falou em voz alta para as sombras:

"Eu sei. O nome africano do preto era M'vá Uapá. Diz que ele foi o primeiro a fazer o prato, e que a receita, de tão boa, foi levada para outras províncias. Tomaram conta dela por lá."

Na mesa do almoço, com Alquíndar à cabeceira, as meninas ocupavam as laterais imediatas. Seguiam-se de um lado Tota, do outro Maria da Penha. Sabina e Santana serviam, com o aprovisionamento na cozinha feito por Chico e Amaro. Começaram com os pimentões recheados e fritos na manteiga, redondos, gratinados, de um vermelhão vivo. No interior de suas paredes afinadas à faca na medida certa (não deviam ser espessas em excesso), o bacalhau desfiado expandia-se, macio e leve como alvéolos. Alquíndar encheu o prato com o pirão das almas - pirão de mandioca fresca, bem temperado, tenro, elástico - saboreando-o com os pimentões. Passou depois à caldeirada. Comia descansado, com pachorra. Trocou de prato e foi ao camurim a escabeche, que degustou com o arroz e o feijão de coco. Devorava metodicamente cada iguaria, alternando um enorme triângulo da fritada de camarões com bolinhos de macaxeira, pepino doce, quiabada, maxixe guisado. Clareou a travessa da lagosta amanteigada e liquidou o bacalhau à Catalã. Entre os acepipes, salteou porções de quibebe, bredo de coco, chuchu frito, beringela empanada. Acompanhava tudo com vinho velho de jenipapo.

Os raios de sol espichavam-se pelo avarandado e já ameaçavam a sala. Os outros se retraíam numa sensação bochornosa, mas Alquíndar esquadrinhou atento a mesa. Finalmente apontou para repetição o camurim. Transferiu para seu prato uma posta larga, cobrindo-a com colheradas do molho escuro e grosso. Escolheu no pires de louça uma pimenta de cheiro enorme e vermelha e a esmagou com o garfo. Destacou um pedaço do peixe, molhou-o fundo no macerado de pimenta, provou, e disse com a voz roufenha:

"Este camurim está de matar. O melhor que já comi até hoje".

Maroquinha, a autora do prato, levantou o busto e encarou os outros com emoção. Acariciou de leve o braço de Alquíndar, que se movia implacável entre a mesa e a boca. Tota ergueu num brinde seu copo de vinho de caju e saudou a prima:

"No ponto. O peixe descansou bem no limão e no alho. O molho está melhor que o de vovó Nôzinha".

Terminado o camurim, Alquíndar correu de novo o olhar libidinoso pela mesa. Devagar, puxou a sopeira da caldeirada. Colheu umas conchas da mistura, com ostras, camarões, pedaços de lagosta e de polvo, entre estrelados de pimentão, azeitonas verdes, rodelas transparentes de cebola. Encheu o prato e resmungou de esguelha para Isolina:

"Eita caldeirada boa, nunca vi coisa igual. Está de matar".

As meninas se olharam num ódio recíproco.

Veio a sobremesa. Sem saber a razão, Alquíndar sentiu a mão dormente. A vista piscou, meio escurecida. Acusou uma pontada na altura do esôfago. Rebateu a sensação desagradável com um copo cheio de vinho. Logo fixou-se numa pratada de papos-de-anjo que Maroquinha lhe pôs em frente, cariciosa, e pôs-se a comê-los. Cheia de ciúmes, Isolina ofecereu-lhe a torta de goiaba, com o olhar agudo. Alquíndar estendeu a mão e acariciou a curva morena da torta, enquanto a prima afogueava-se. Do outro lado da mesa, Maroquinha abriu uma talhada no bolo Souza Leão e exibiu ao velho o interior dourado e úmido. Alquíndar enristou o dedo médio e enfiou-o lento na greta do bolo. Despudoradas, as meninas se revezavam no jogo erótico. Descobriam ao primo os pratos de queijo Seridó frito com bagos túmidos de doce de jaca, as queijadas tenras, a mucosa rosada dos quindins, a compoteira repleta de doce baba-de-moça. Suspiravam, enquanto Alquíndar dava conta de tudo.

O velho excedia-se como nunca, satisfazendo o desejo das cunhadas. Veio de novo a dor forte, irradiando pelo braço esquerdo. Resmoneou, num timbre engrolado:

"Vocês me matam".

Isolina sentiu a pele do busto arrepiar de prazer. Ia no fim a sobremesa. Trouxe o cálice de licor de carambolas e a xícara de chá de capim santo. Ao aspirar o cheiro bom da infusão, Alquíndar perdeu-se numa vertigem, num orgasmo, e desabou da cadeira. Aos gritos das mulheres, Chico e Amaro assomaram da cozinha. Rodearam Alquíndar estendido no chão, a camiseta por baixo do pijama molhada de suor, apertando a xícara de chá com a mão lívida. Na queda, tinha arrastado a toalha da mesa e derrubado a compoteira de baba-de-moça. A calda espessa com pedaços de coco lambuzava-lhe o rosto, que as meninas tentavam limpar lambendo-o, sôfregas. Depois carregaram-no em procissão até a camarinha.

Enfim, passada a dor e cada vez mais calmo, Alquíndar entrou a cochilar. Deixaram-no a sós, com Sabina fazendo sala a um canto.

Ao acordar, o velho excitou-se com a presença de Sabina e quis fustigá-la: mandou trazer uns beijus, bolinhos de goma e uma jarra de ponche de graviola. Perguntou se para o café da noite ia ter sopa de repolho, munguzá e manuês. Na volta de Sabina, as meninas vieram junto, enciumadas. Mandaram a cria sair, Alquíndar não deixou. As meninas sentaram na beira da cama enquanto o velho comia. Metiam-lhe bolinhos de goma na boca. Maroquinha botou para aquecer um beiju entre as pernas. O velho sorria de vez em quando para uma e outra, arrastando a voz com galantaria:

"Vocês quase me matam. Suas danadas".

Ficaram os três ali um bocado de tempo, contentes. Excitavam-se com o ruído dos bolos de goma sendo despedaçados na boca, acariciavam os beijus. De repente Alquíndar tamborilou os dedos na cama e traçou as abas do paletó de pijama:

"E o almoço de amanhã? A arabaiana recheada? Vão já cuidar da cozinha, andem."

Saindo as meninas da camarinha, Alquíndar voltou-se para Sabina. Perguntou se ela ia rechear o peixe. Exibiu a urupema cheia de beijus. A cria hesitava, até que arrastou a cadeira para junto da cama e estendeu o rosto. Alquíndar lhe deu para beber um pouco do ponche de mangaba. Depois escolheu um beiju, limpou o excesso de farinha e meteu-o devagar na boca trêmula de Sabina.

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