DETERMINISMO
Marco Aurélio Brasil Lima

No entender de todo mundo é a oportunidade perfeita para Renato solidificar o reinado e cortar pela raiz a falação de que está amolecendo. Ele não tem alternativa: é certo que a manhã de sábado amanheceria pra encontrá-lo de pé no campinho do Germânia, a velha e infalível lâmina na mão e o sangue do Jota e do irmão dele escorrendo sem parar pelo areião.

Sabe, essa vida é amargosa, trabalhosa. Um homem precisa de tempo e vontade férrea pra saber o que seja respeito. Aí ele tem o que se convém chamar poder; gente que o teme, que o obedece, que quer agradá-lo. Seja num círculo pequeno, seja num grande, isso não tem preço.

Você há de, na sua pressa típica, rotular o círculo de Renato como pequeno, já que é gente parda da periferia que mata e morre todo santo dia, fala sua língua estranha e chafurda na sua lama sem fim. Daqui, contudo, de trás desse balcão de bar, onde as pessoas vêm comentar tudo o que acontece na adjacência, eu tenho que discordar. Na verdade le garanto que Renato tem grande círculo de respeito, porque a gente que orbita em volta dele é muita, irmão, muita! 

Custou o couro de seis homens. Seis homens. Quer dizer, pela mão dele, que pelas dos comparsas foi mais. Começou cedo, com quatorze foi o primeiro e nem se há de dizer que foi um pirralho, mas o Mutum, sujeito tinhoso que mais de uma vez me quebrou o bar em briga, ligeiro em sacar o berro e em passar a mão em mulher dos outros.

Agora tem seu domínio, coisa cara. Quanta gente você não vê no alto de suas fortalezas blindadas, com insulfilme e olhar aparvalhado, que jamais há de saber o que seja isso? Respeito? Temor? 

E não só isso. Amor, também, que Renato é homem admirado, modelo pra muito guri que cresce sem referência nesse sarjetão. Daí porque o que Renato tem, le digo, não se joga fora de hora para outra, como quem cospe um bagaço de cana.

Por essas e outras que todos têm como certo que o sábado há de amanhecer para encontrar Renato dando curso ao seu destino, fazendo calar a boca de quem o desafia, confirmando a sua história.

Euzébio diz que acha que não. Que Renato tem perdido tempo demais em leroleros com a menina crente. Água e óleo, ele diz, água e óleo. Seria o caso de o dito estar virando óleo também, pra poder se misturar.

Sei que eu agora olho para ele ali, sentado a uma de minhas mesas, comendo um palito de dente com o olho meio perdido na selva da favela e o que estará pensando?

Estará vendo a mãe, abominando o pai dele, que ele não conheceu. Estará vendo os dias de barriga vazia e a necessidade de estar com os que o desprezavam. Estará vendo as surras que levou naquele mesmo campinho, as pedras dadas e recebidas, a vida esgueirenta por entre os barracos, pulando as lajes, vendo a marcha de um mundo que o põe revel e calado, que não quer saber da sua voz. Estará vendo tudo o que o fez ser o que é. 

- Ela quer casar na igreja, diz, sem saber que eu ouço enquanto seco um copo.

O sábado amanhece com falação. Jota e o irmão cospem no chão, agitam os braços e esbravejam. 

Renato não apareceu.

Ao saberem que tomou a menina crente na noite e correu alguma estrada desse mundo todos dirão que se acovardou, que pensou aqueles dois coisa demais pra faca dele e que era o seu sangue quem perigava irrigar o campinho. 

Mas eu, que sei, direi apenas que Renato exorcizou seus fantasmas.

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