SERÁ?
Nato Borges

A discussão começou na birosca, não se sabe bem o motivo. A birosca era a de sempre, suja, mal lavada e com seus bêbados cativos espalhados pelos lugares de costume. As cadeiras velhas, trincadas por anos de bundas incansáveis e arrastões, ora violentos, ora não. De qualquer modo, chamava a atenção o fogo e, por que não, o prazer com que os dois se dedicavam à celeuma.

- Existe.

- Não existe. Eu aposto que não existe.

- Mas existe.

- Você já viu? Já viu alguma vez?

- Ver, não vi. 

- Então...

- Mas conheço quem já viu, e garanto que existe.

- Se existir, existe outra vida além dessa...

- Pois existe!

A cada frase, um gole a mais na malvada. Ela ardia a garganta e fazia crescer o ânimo pela defesa de pontos de vista imutáveis. No fundo, sabiam que não iam mudar a opinião um do outro, mas havia o gosto pelo debate, talvez um dos poucos que sobrassem em existências até ali sem o menor sentido. Do fundo de uma miséria já sem volta ou destino, viam ali umas poucas oportunidades de serem ouvidos, mesmo que por outro nada.

- Se conhece, me apresenta.

- Não precisa. Vai dizer que não viu na televisão?

- Ah, vi. Ali vi sim. Mas televisão não conta...

- Como não. Então você também viu...

- Mas ali era truque. Quero saber quem viu de verdade...

Saindo do banheiro porco do fundo do bar, na verdade um buraco feito na terra batida que servia de quintal ao barraco, um velho ainda mais enfrangalhado tomou tento na conversa. Lembrou que em algum tempo teve a idade dos dois, e lembrou que tinha visto.

- Eu já vi! - falou alto.

Os olhares se voltaram. Houve uma certa excitação, novas cervejas foram pedidas. A discussão ia ganhar fôlego. A mesa de bilhar parou. Depois de uma longa tosse e uma baforada no cigarro vagabundo, o velho pediu uma pinga e sentou-se, com ar de quem não tem porque mentir, porque da vida não espera mais nada.

- Como foi isso? Perguntou o que acreditava.

- Faz muito tempo, eu devia ser da idade de vocês. Trabalhava em casa de bacana. Era uma casa grande e por lá aparecia sempre.

- Mas você viu mesmo? Duvidou o incrédulo.

- Vi, e não foi uma vez só não. Foram várias. Vi muito. Por lá, aparecia sempre...

- E faziam mal?

- Olha... assim na primeira vista parecia que não. Mas aquele povo vivia atormentado, assombrado... só podia ser por causa disso. Não tem outra explicação.

Mesmo os que não acreditavam acenaram com a cabeça. De fato, se existissem, boa coisa não poderiam trazer para quem visse.

- Uma vez apareceram na minha frente, cheguei a botar a mão...

- Ah, isso é que não...

A pouca credibilidade conquistada até ali caiu por terra. Os da mesa de bilhar voltaram ao jogo. O resto retomou a conversa que seguia antes da aparição do velho. Ter visto era uma coisa, mas botar a mão? Isso ninguém...

- Não falei? Só existe na imaginação de gente como esse aí.

O que acreditava perdeu o apoio, mas não a crença. Pensava em uma saída, enquanto o velho, humilhado por suas próprias palavras, pendurou a conta e foi-se embora com o ar de quem não precisava convencer mais ninguém. Um dia eles veriam que era verdade, mas ele não estaria mais por ali. Que diferença fazia?

- Estou dizendo que existe.

- Não existe. Isso que você vê em foto e televisão é invenção. Não existe!

- Existe, tem que existir.

- Olha, vou falar pela última vez, que isso já está me irritando. De uma vez por todas, nota de cem reais não existe, tá bom? Não existe!!!

O incrédulo encerrou a discussão, engoliu a pinga de um gole e foi também embora, que a nega já devia estar pelas tamancas. O outro ficou na birosca, o olhar perdido no copo engordurado...

- Ah, existe... tem que existir...

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