O CANDIDATO
Juraci

O dia estava frio como agora. Sempre fazia frio ali. Nossa casa era cercada por três enormes lagoas denominadas Três Irmãs. Uns, chamavam-nas de Três Virgens. Eram límpidas e imensas. Delas extraíamos água e carne para o nosso sustento. A carne mais procurada era a de jacaré. Fartura deles. Conosco, esses animais não eram violentos, pareciam domesticados. Cuidávamos deles desde pequeninos. Reconheciam estranhos, ficavam agitados num vai e vem tresloucados quando apareciam alguns. Havia época em que deixavam minha mãe furiosa ao devorar cabras e galinhas botadeiras. Depois, isso tudo passava e a normalidade voltava na várzea.

Foi num desses dias, enquanto brincávamos no largo, de boizinhos e cavalos, de ossos de carneiros abatidos, que escutamos o tropel de animais se dirigindo para a nossa porteira. Estava aberta, o que dificilmente acontecia. A poeira na estrada indicava que eram muitos. Logo apareceram.

Desrespeitando o limite, entraram com toda aquela arrogância sobre os cavalos. Pararam na horizontal, perfilados, quase pisando em nós cinco. Parecia filme faroeste todavia, não conhecíamos nenhum dos forasteiros. Eram de um aspecto assustador. Amedrontados ficamos a esperar o que os homens desejavam. Coisa boa sabíamos que não era.

Silenciosos, mirantes, observavam a beleza da mata fechada, a riqueza do lugar. Eu não entendia nada mas, meu irmão mais velho, o Miguel, percebeu a cobiça nos olhos quase cobertos pela barba e pelos chapelões empoeirados.

A pergunta veio e meu irmão respondeu quase num sussurro, olhando para o chão:

- Ela não está. Foi para a roça antes do dia apontar.

O menor de nós - de três anos apenas - assustou-se e começou a correr para dentro de casa, aos gritos. Nem cruzou o portal. Foi logo agarrado por um deles e forçado a sentar-se no cabeçote da cela. Os gritos do pequeno eram abafados por mãos imundas e com cheiro de fumo de rolo.

Novamente a voz estridente ordenou:

- Vá chamar sua mãe moleque, senão vou levar o menino.

- Levar pra onde? - perguntou Miguel sem saber o que fazer. Miguel era mesmo o mais velho mas, com doze anos apenas, não era capaz de pensar numa saída para situações inesperadas como essas.

- Levar? Não. Vou jogá-lo naquela lagoa. - disse fazendo o cavalo cavalgar naquela direção.

O Miguel foi logo imobilizado e amarrado no rabo do cavalo quando tentou agarrar o pequerrucho. Chorávamos e implorávamos, sem solução. Procurávamos barulhar pouco para não espantar o animal e agravar a situação. 

Na lagoa, o brutamontes mergulhava o menino várias vezes na água. Se divertia com o espetáculo que oferecia aos amigos, numa mostra de liderança para o mal. Estava mesmo decidido a afogar a criança. E afogava... afogava... e ia cada vez mais para o fundo, esperando pela dona da casa. O menino já não tinha mais choro e nós, mais esperanças.

De repente a porta de nossa casa se abriu e minha mãe, com a cartucheira do nosso falecido pai, começou a dar tiros para salvar sua cria. Um jacaré também resolver abocanhar a perna do estranho dentro da água, que mal conseguiu jogar a criança na grama da beira da lagoa.

Com muita dor e pressa, quase não alcançava o lombo do seu animal.

- O que vocês querem? Esqueceram que invasão de propriedade é crime? - perguntou minha mãe pronta para dar quantos tiros precisassem. Havia chegado pelos fundos da casa e por pouco não esquecia de pegar a arma.

- Queremos comprar essas terras para colocarmos uma casa de tecidos aqui. Com luz, água e tudo mais. É a chegada do progresso neste vale de Urucuia. Aqui é um ponto estratégico para o nosso projeto. - disse num esforço enquanto observa o estrago na perna e o sangue que marcava o grama verde.

- Não temos terras para vender. Um segundo para deixarem este local. Vão embora senão... E minha mãe armou novamente o gatilho para disfarçar o medo que paulatinamente foi sumindo à medida que alguns peões se juntaram a ela.

E foram sem conseguir a resposta que desejavam ouvir.

Muitos anos depois, por ironia do destino, o chefe daquele grupo veio à cidade onde moramos, acompanhado de um primo nosso. O primo, candidato a prefeito de uma vila que passara a cidade recente e o outro fazendo campanha para deputado. Ele era o candidato. Ficaram em minha casa. Queriam os nossos votos e era por demais, falastrão. Com um celular no ouvido constantemente, mostrava sua popularidade forçada. 

Na hora do jantar, quando todos devoravam as delícias da mesa, comecei a contar a história bem devagarinho. Chamei o meu irmão que quase morrera afogado, para escutar.

O homem foi ficando entalado e vermelho que nem o peru assado do jantar. E minha narração só teve fim quando meu irmão deu um murro ensurdecedor sobre a mesa.

Sem uma palavra, o candidato arrastou a cadeira, desceu as escadas e deixando a mala e o companheiro para trás, sumiu de vista.

Não sabia que éramos aqueles.

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