PARA MAFALDA COM AMOR
May Parreira e Ferreira

Sampa e seus modernos habitantes, apressadas figuras, pessoas temerosas, garoa fria de outono. Sampa, da cultura, dos cinemas de arte, dos museus, das culinárias requintadas. Sampa aqui me tens de regresso. Sim, estou retornando para a cidade que polariza meus sentimentos de amor e ódio. Tudo tem seu tempo, e nada como o tempo para nos mostrar o caminho. Nestes últimos vinte meses passados em Uberlândia, aprendi muitas coisas, fiz amizades. Quando cheguei, tinha a idéia de aqui fincar minhas raízes, trazer a família, comprar uma casa. Quis o destino uma sorte contrária, e volto para a capital cinzenta e atravancada.

Gostaria de contar para meus amigos desconhecidos, aqueles que me lêem, histórias que vivi nesta cidade cheia de luminosidade. Eu poderia falar da emoção de ver o horizonte nos contornos da cidade, na estranheza de sentir o céu tão azul e tão próximo, no encantamento com a generosidade de cores das buganvílias, dos tucanos, dos exibidos curicacas. Mas tudo isso os leitores já conhecem, não é novidade, e eu correria o risco de fazer uma crônica chorosa e tristonha. 

Resolvi, então, contar uma história de amor. Um amor diferente, algo que eu só imaginava possível em ficção literária.

Noite de primavera, ano passado, aniversário de uma amiga, gente animada, prosa da boa, fui apresentada a uma senhora muito simpática. Em seu conjunto de seda com renda aplicada nas golas, em seu riso quase tímido, grandes óculos escondendo olhos curiosos, não imaginei quais surpresas ela pode guardar. Nos contou que é viúva, um filho casado recém-formado em medicina, um gato angorá, e um amor. 

Aos poucos ela foi conquistando um lugar no coração de um grupo de amigas. Neste grupo existem algumas jovens, algumas com filhos pequenos ou adolescentes, muitas com filhos casados, netos. Ninguém estranharia se esse amor ao qual ela se refere, fosse um senhor, talvez aposentado, talvez viúvo, mas longe está a verdade. O amor desta senhora atende pelo nome de Daniel, sim leitores, o Daniel, ex-João Paulo. 

Quando eu era meninota, meu vizinho, em São Paulo, era o produtor da Jovem Guarda. Por sua casa passavam os ídolos da juventude, Roberto, Erasmo, Hervé Cordovil, Vanderléia, e todos os outros. Nunca me lembro de ter ido buscar um autógrafo, e de alguns eu até gostava. Mesmo minhas amigas mais fãs, davam gritinhos e tinham fotos em suas escrivaninhas, mas nunca me lembro de que alguém tivesse quarto decorado por fotos e pôsteres, terão nossos pais sido mais severos, eu pergunto.

Precisei estar em Uberlândia e conhecer esta minha amiga, para saber o que é ter um ídolo. Porque eu não fazia idéia do que pode fazer uma fã. Sob suas roupas sem decotes, no lado esquerdo do peito, ela guarda uma tatuagem em forma de coração, com o nome de seu filho e de Daniel. Eu, medrosa, não faria uma tatuagem nem se fosse preciso salvar uma vida. 

O seu gato angorá atende pelo nome de Dani, seu quarto é forrado nas paredes, armários, janelas, e agora, o teto também, por fotos, camisetas autografadas, chapéus, mais fotos, pôsteres tamanho natural, e um mais não sei tanto de coisas. Ela tem gravadas as inserções comerciais que ele faz para a rádio, vai aos shows, leva docinhos da Dona Líbia, assiste a todos os jogos de futebol que ele faz para a AACD. A buzina de seu carro é o rosto de Daniel, é amiga de toda a equipe do cantor e é reconhecida e chamada por ele de mãezona.

Sabendo estas coisas, alguém pode me perguntar, mas tudo isso é normal. A minha resposta honesta é que nela é absolutamente normal. Porque tudo o que ela possa fazer para o seu ídolo, há-de aparecer sempre algo novo, não a impede de ser uma excelente mãe, de ser amiga dedicada, de fazer o sopão para os necessitados, praticar sua hidroginástica, de ir ao nosso encontro com toda a disposição do mundo. E de fazer o melhor bolo de milho que se possa imaginar.

Alguém pode estranhar que uma senhora distinta assim tenha um amor desta natureza, nesta ou em qualquer outra vida, eu também estranhei um dia. Gostaria que todas as pessoas que sentem esse tipo de amor pudessem ser como esta amiga.

De tudo que me fará falta em São Paulo, uma eu tenho certeza, sentirei a saudade de seu riso cristalino e da frase que o acompanha, Minha Nossa Senhora da Boca Aberta, olhai para os lírios do campo e dizei-me o que vejo.

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