MENINA DOS OLHOS
Ana Luísa Peluso

O olhar atento do homem, como rebento que não rebentou, a fitava do outro lado da sala, podia sentir. Mesmo ele tornando a atenção para o que acontecia além da janela, já em seguida a seu baixar de cabeça.

Era um costumeiro estado de ser. O broche estava torto, notou ao olhar a lapela da camisa e aproveitou para ajeitá-lo sem se ater às duas enormes borboletas cor-de-ametista que refletiam a brancura de sua tez em contraste à boca vermelho-carmim, único traço reconhecível no brilho que jazia ali, à primeira vista. Ela nunca ousara olhá-las mais de uma vez. Como estupidez criara o estranho hábito de nunca encarar as borboletas de frente. Para não retê-las na memória, possivelmente. Mesmo à noite, quando se sabia liberta delas, virava o broche de cabeça pra baixo, deixando-as apenas de mãos dadas graças aos fios cor de ouro-mentira, mas sem poder encarar o mundo, nem voar por sobre ele. Isso fazia delas impotentes, e agradecida, se entregava aos mesmos sonhos de sempre, de olhar para tantas pessoas, que não raro acordava com o olhar cansado. Como a vida.

Não obstante a tudo isso, jamais pensara passar o natal sem companhia. Todos foram para casa da tia brindar suas taças e reclamar seus presentes. A mesma tia, com o mesmo ar de enfado em meio aos mesmos bordados que tecia para doar às obras de caridade. Tinha-se por caridosa, a pobre!... - riu-se. O homem rapidamente se virou para ela e fez menção do que lhe parecera um sorriso, não sabia ao certo, pois não ousava verificar, nem mesmo de relance, o que diria fitar sua boca para saber de algum sorriso, mesmo que por um instante?

Tudo o que fez foi levantar-se e dirigir-se novamente ao balcão da recepção pedindo mais informações quanto ao atendimento. Esperava há horas e apenas por isso estava ali na noite de natal. Senão, estaria junto à família, na casa da tia e seus bordados estéreis. Sentia o corpo febril, as pernas doloridas e ainda lhe faltava, um pouco, o ar. A atendente não sabia informar. Poderiam se passar cinco minutos ou duas horas. Dependiam da chegada do médico, teria mesmo de aguardar. Sequer sabia se o rosto da atendente enunciava verdade, simplesmente porque não a olhara. Fingia procurar documentos na bolsa.

Ganhara o broche da tia em uma outra noite de natal. Lembrava-se ainda do olhar da velha ao voltar do quarto de dormir com o broche em punho, dizendo que cuidasse bem, pois tinha sido da bisavó. Sequer o embrulhara. Apenas, dada a recomendação, esticou os braços e colocou-lhe em frente ao nariz duas enormes borboletas cor-de-ametista incrustadas em um broche cor de ouro-mentira. Fora a única vez que ousara fitá-las. Suas asas abertas panoramicamente lembravam dois enormes olhos e num trisco de tempo viu seus próprios, ali espelhados. Um mal estar lhe acometeu a alma e sentiu-se colocada frente ao eterno, como se por um segundo se desse conta do infinito de um olhar. E desse dia em diante passara a recear qualquer encontro de seus olhos com outro qualquer. Mal se olhava no espelho e quando o fazia, nunca, nunca mesmo, encarava seus próprios olhos. Temia ser tragada por um deles, ou pelos dois.

Sentou-se novamente na sala de espera, cujo piso fora branco um dia e notou que o homem continuava na mesma posição, olhando através da janela, de costas para ela.

Pressentia algo sério (as mãos já mostravam manchas roxas, "como a cor-de-ametista das borboletas do broche", - pensou), mas não fez menção de levantar-se novamente. Nada fizera para aquilo tudo estar acontecendo. Apenas não olhava para os olhos das pessoas, nem para as borboletas. Será que após tantos anos, algo se ressentia e tornava-a roxa como borboletas em broches, ou como olhares de açoite, ou ainda olhos roxos de pancadas, como as muitas que levou? Tanto melhor que não soubesse. Cada vez que acudia à memória, um turbilhão de imagens do passado, todas cheias de olhos acusadores lhe saltavam à mente, e quase se lembrava de tudo que já não sabia mais exatamente o que era.

Como também não soube explicar, logo em seguida, os fatos assustadores que passaram a acontecer ao seu redor. Tudo girava e ela via-se envolta por uma nuvem de olhares. Todos os olhares de sua vida. Alguns serenos, outros piedosos, raivosos, cobiçosos, sensuais, dignos, impávidos, olhos de todo mundo...

Já ia levantar-se para chamar a atendente, quando sentiu um forte impulso jogar seu corpo novamente na cadeira ao mesmo tempo em que as duas borboletas saltaram do broche em vôo feroz, rumo aos ombros do homem em pé, do outro lado da sala, e sumiram-se entre suas juntas. Duas imensas asas abriram-se, então nas costas do homem e ele se virou, levitando para junto dela, até encontrar-se suficientemente próximo para que ela lhe visse os olhos cor-de-ametista. Olhos de borboletas, olhos de manchas roxas, de flores do buquê de casamento, do roxo do primeiro soco, das veias que explodiam, túrgidas.

De repente tudo ficou claro, viu seus próprios olhos refletidos em dois pequenos espelhos com aros em volta e por trás deles dois olhares lhe examinavam a face.

Sentiu dois dedos baixando-lhe as pálpebras.

E não pode ver ao seu lado, dentro de um saco de plástico transparente, ainda sem identificação, alguns poucos documentos, um cartão de natal amarrotado e um broche cor de ouro-mentira cujos fios davam-se as mãos em comunhão, vazios de borboletas que se sabiam.

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