QUANDO OS OLHARES SE CRUZAM
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães

Trocaram olhares muitas vezes. Mas eram olhadelas rápidas, de relance, fingidamente desinteressadas. E assim adiaram por mais de ano o cara a cara, o olho no olho. 

Um dia esteve bem próximo de acontecer, mas Ele estava com conjuntivite - as imagens embaçavam - e não pode ver a cor dos olhos d'Ela. Como ele usava um ray-ban escuro, Ela também não pode ver a cor dos olhos d'Ele. 

Mas estava escrito em algum alfarrábio do destino que aqueles olhares iriam cruzar um dia. E uma tarde, quando se encontraram na biblioteca da faculdade, aconteceu.

Ele tinha escolhido um Atlas geográfico antigo para pesquisa e procurava por um lugar para sentar. E, capricho do acaso, o único e disponível lugar estava ali, naquela mesa em frente onde Ela, fingidamente concentrada, lia um tratado de Euclides. 

"Posso?" Perguntou em voz baixa, quase inaudível, como pedia o cartaz afixado nas paredes da sala. Ela assentiu com a cabeça, tímida que era, sem naturalmente encará-lo. E Ele sentou cuidadosamente tomando cuidado para não interrompê-la mas querendo obviamente ser percebido por Ela.

Estavam, enfim, frente a frente. Ele, parecia passear pelos distante montes Urais ou por Malaca, mas estava bem mais perto do que Ela podia imaginar. Ela, perdia-se nos labirintos exatos da Geometria Euclidiana mas encontrava-se ali quase ao alcance dos braços d'Ele. Podiam por isso ouvir a respiração profunda e pausada um do outro e sentir que, como de outras vezes em que estiveram próximos, a ansiedade não contida minava-lhes a coragem.

Ia dar em nada, pensaram os dois. Mas Cupido, que descansava em cima de uma estante bem organizada de obras sobre a mitologia grega, decidiu fazer a sua parte e buscou na aljava uma das suas infalíveis setas. Vã procura. Como o dia tinha sido intenso - com essa estória de "ficar" da meninada de agora, o anjo tinha usado todo o seu estoque.

Que peninha, lamentou o Deus do Amor. E para dar um jeito de salvar aquele encontro mil vezes adiado lançou mão do único recurso de que dispunha: um cisco. É. Um pequeno e quase insignificante cisco desses que, graças ao desleixo de alguma faxineira, ficam largados por aí pelos cantos. 

Esse cisco, em particular, foi alçado ao ar justamente quando Ele virou a página do atlas para o mapa da distante Capadócia. Como um pequeno e imperceptível inseto, flutuou e pousou suavemente no meio do mapa, nos arredores da localidade conhecida com Derinkuyu, de onde foi atirado - dessa vez por um deslocamento de ar provocado por Ela ao virar a página do Tratado de Euclides, e pelo providencial sopro do rechonchudo Cupido - dentro do olho esquerdo d'Ele.

De repente, Ele começou a piscar e Ela achou que fosse flerte. Ele então começou a esfregar violentamente o olho com as costas da mão sem conseguir esconder a irritação tão bem quanto sabia esconder os seus sentimentos; e Ela percebendo-o em apuros propôs-se a ajudá-lo a se livrar do incômodo cisco. Ela seria capaz de dizer, até com modesta franqueza se perguntada fosse, que faria aquilo por qualquer um.

E só assim, por uma questão geográfica ou mesmo matemática, com a ajuda de um deus ou porque já estava escrito, ou simplesmente por causa de um cisco "inconveniente", seus olhares finalmente se cruzaram. Os céus, como diria o Mago best-seller, tinham conspirado desavergonhadamente a seu favor . 

O tempo se arrastou para além da biblioteca e da faculdade, e anos depois, já íntimos, ele confessariam um ao outro o quanto haviam sonhado com aquela primeira troca de olhares. 

Ele, meio envergonhado, contaria das vezes em que sonhara que os olhos d'Ela eram cofres com combinações complexas que ele tentava decifrar e que, não logrando êxito, acordava desesperado. Ela, por sua vez, contaria o estranho e repetitivo sonho em que via negros códigos de barra na íris dos olhos d'Ele. 

Cúmplices, chegaram juntos à conclusão de que não havia mistérios, nem enigmas, nem códigos a serem decifrados; mas espelhos da alma que precisavam, para refletir o que sentiam um pelo outro, ser polidos, dia após dia, pacientemente, com mãos de artesão. Mas que não deveriam ser obsessivos, já que às vezes um pequeno cisco faz a diferença. 

Ela, que sempre foi bem mais romântica do que Ele, guardou consigo - colecionava pequenas lembranças e souvenirs de momentos importantes e marcantes da sua vida - junto com o terço de contas da primeira comunhão, do diário de adolescente cheio de poemas ingênuos e recortes de fotos de artistas da TV, do trevo de quatro folhas colhido na tarde chuvosa de Maio em que eles foram rapidamente apresentados, pasmem, um pequeno frasco transparente contendo aquele cisco que... Bom, essa parte vocês já conhecem.

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