A MÚMIA
Fernando Zocca

Meu papai grande, como é difícil a fome! Foi pensando nisso, que saí perambulando naquela sexta-feira, igual a um cachorro velho em busca de um osso mal roído.

Mas quando você, me desculpe a expressão, está cagado, as coisas ficam muito mais difíceis de acontecer. Por isso andei feito um desvairado e depois de horas, cansado, parei defronte um prédio sinistro que ofertava sombra. Aspirava aquele ar fresquinho, quase úmido, quando passou um ônibus carregado até o teto com as substâncias organicamente organizadas, que com certa veracidade,deixavam mais um dia de compromissos e deveres. A fumaça negra e quente constringiu minhas mucosas causando cianose também na pele dos braços e mãos.

Querendo fugir daquela situação entrei por aquele corredor adentro. Estava tudo aberto, escancarado.

Caminhei tentando encontrar alguma pessoa que me auxiliasse. Mas que nada. Não havia viva alma naquele esboço de necrotério. Por isso fui afundando. Entrei bem lá dentro e quando pisei numa tabua podre, um gemido quase animalesco me arrepiou os pêlos. O meu cabelo, cocô-de-rola, eriçou-se todo e hirtos feito espinhos, daqueles porquinhos, denunciaram a adrenalina lançada no meu sangue já gélido.

Decidido a não fugir, precisei adstringir o períneo para não urinar nas calças.

Quando minhas retinas se adaptaram à luminosidade escassa do ambiente, compreendí que estava no local onde se realizava uma sessão mediúnica. No canto sujo havia a indefectível mesa velha, carcomida pela baga-baga, que dominando todo o madeiramento ali existente, fazia dele seus cupinzeiros. Tentando decifrar o verdadeiro enígma que se tornara minha vida resolví consultar o incorporado.

Sentei-me numa poltrona que ficava bem pertinho daquele ser lúgubre e pude ouvir o que ele dizia para uma de suas assistentes. "Manda ele falar pro devedor que ele não passa de uma pomba". A moça então repetiu para o consulente que o espírito alí presente ensinava o que se deveria falar para o seu devedor.

Eu fiquei assim meio que cismado, invocado mesmo, até saber por um vizinho de cadeira, que o famoso devedor do beneficiário credor alí presente, depois de ser chamado repetidamente pelo substantivo, veria inúmeros animais columbiformes esmagados pelas esquinas dos caminhos que trilharia.

Não sei dizer se o temor que dele se apossaria apressaria o pagamento da conta. Mas, com o perdão da má palavra, como quem tem cu tem medo, eu creio que a ausência do credor nas demais sessões seguintes poderia significar também que tivesse obtido sucesso na sua sugesta. 

Por isso resolvi voltar mais vezes naquela arapuca de apanhar incautos. Além do mais o enígma do enbaralhamento de minha vida ainda persistia. 

Fiquei sabendo que um dos espíritos que mais baixava naquele local era o da múmia Egípcia. Ele tinha sido um Faraó sabichão, que sacava tudo de cura e trepanação. Uma de suas características peculiares era a de receitar medicamento em forma de chás e ervas. Essa múmia havia sido parente de Ramsés II, e dentre o grupelho que baixava no local era considerado o "mais melhor de bão", tendo inclusive uma espécie de fã clube de adoradores incansáveis. 

Na minha primeira consulta, muito ingenuamente peguntei ao recém incorporado: "Seu Faraó, o senhor por acaso, fez algum curso de medicina?". Recebí uma cotovelada do assistente, que com uma tosse simulada afastou-me de uma provável reprovação.

Fiquei imaginando como todo mundo que ali vinha "engolia as pílulas" sem queixar-se de erro na terapêutica. Havia até atletas renomadas que se sujeitavam ao ridículo de sacanagens iguais aquelas em busca do alívio para suas dores. 

Alcoólatras tentando fugir do vício, recebiam como remédio "vinhos reconstituíntes" e massagens com vinagre. É...o basquete não era brinquedo não!

Nadica de nada me desautorizava a pensar que pessoas com o mesmo nível técnico eram responsáveis por milhares e milhares de internações nos sanatórios psiquiátricos espíritas. Uma vergonha para a saúde pública e a pratica médica nacional.

Em meses e meses de visitação contínua não percebí qualquer temor manifesto, por ameaça que fosse, de algum fiscal da lei em coibir o delito do Artigo 282 do Código Penal. Afinal, crime era crime. E se não havia repressão, por que não mudavam o Codex?

Não percebí ninguém do Conselho Federal de Medicina que tivesse interesse na manutenção da reserva de mercado aos seus afiliados. Eles era ótimos na sufocação das faculdades emergentes, mas faziam vistas grossas aos charlatães que proliferavam às pencas.

Ao pedestre desatento, gritou "Preste atenção!", o ciclista mauricinho, classe média alta, que num arroubo de vigor deixava o seu veículo na calçada e ingressava nas dependências do Banco do Brasil, para sacar o dinheirinho que trocaria pelo Tampico.

Quando saiu contando a grana, sentiu uma dor terrível no joelho esquerdo. Era uma fisgada inoportuna. Massageando a articulação, depois de guardar o dinheiro na pochete, olhou atentamente para a figura de uma pirâmide, que no poste plantado defronte a porta do banco, sussurrava-lhe algo.

O poder do embuste Faraônico ainda persistia, apesar dos séculos.
Quousque tandem?

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