UM FATO ARITMÉTICO
Larissa Meo

No meu diário de 15 anos guardo boas recordações daquela época maluca, onde as mudanças do corpo nem sempre eram acompanhadas pela cabeça. E entre muitas histórias, esta com certeza vale ser lembrada.

Seria mais um dia como os outros. Sem novidades, sem improvisações, nem emoções. A aula de matemática estava um saco e o professor, um velhinho chamado Sebastião que com certeza deve ter sido colega de Euclides, o pai da geometria, não ajudava a mudar a cena lastimável. Minha cabeça dava voltas e meu estômago acompanhava a rotação. Não ia demorar muito para que eu começasse a vomitar em progressão geométrica até que entre senos, co-senos e tangentes recebi um pequeno beliscão da minha amiga Cláudia.

Cláudia fazia o tipo gata sensual, com o cabelão tingido de loiro. Carioca da gema, naquele momento ela se encontrava perdida no interior de São Paulo. Pessoalmente ela me confessou que se sentia como um cachorro que caiu da mudança onde Judas perdeu as meias, porque as botas foram perdidas bem antes.

Me afastei um pouco e ela colocou sob a carteira um pedaço de papel dobrado em dez vezes contendo a seguinte frase:

- "Aquelas fofoqueiras estão falando da gente!".

Como é que é? Quem anda falando de mim? Deve ser alguma invejosa, pensei cá com meu Tico. O Teco imediatamente concordou. Não é fácil ser popular, mas eles não me deixam em paz nem quando estou em órbita. Peguei outra folha de papel e escrevi:

- "Cláudia seja mais direta. Quem fofoca do que, porque e como?".

- "Maria Clara acorda. A dupla Fabíola e Andréa, da turma das puritanas CDFs, não pára de trocar bilhetinhos e risos. Estou com uma manada de elefantes atrás da orelha já que elas olham para mim o tempo todo. Devo ser muito gata ou ainda estou com vestígios da máscara de abacate na cara".

- "Mas qual é o problema? Você saiu com o namorado da Andréa e ela descobriu tudo?"

- "Não, eu ainda não saí com o cara apesar dele me dar mole. O que me aborrece nesta história é aquele ar de superioridade".

- "Se for em relação à aula do seu Sebastião é provável que o raciocínio delas seja superior ao meu em termos técnicos, porque em termos práticos posso calcular um guarda-roupa novo na velocidade da luz. Esse raciocínio eu aprendi com a minha mãe e por isso acredito que ele seja genético, não aritmético".

- "Tá, mas eu quero tirar esta história a limpo e por isso fique de olhos abertos".

A hora se arrastava e os ponteiros dos minutos deviam estar atrofiados. O sinal tocou e nós permanecemos sentadas na carteira apenas disfarçando. A classe foi esvaziando um a um, até que Andréa se levantou, foi em direção ao lixo e jogou alguma coisa nele. Quando a última alma deixou o recinto fui até lá para ver o que era. A Cláudia não acreditou. A prova estava toda picada e para nós aquilo passou a soar como um enigma. Uma ova. Não tive dúvidas e agi logo. Enquanto a Cláudia vigiava a porta eu fazia uma faxina básica no lixo. Pedacinho por pedacinho, eu acondicionei aquela prova de atentado a minha inteligência num saco plástico até resgatar o último papelzinho.

- "Mas está todo picado Maria Clara e o que a gente vai fazer com isso?". 

- "Me arranja um tubo de cola que daqui a meia hora eu te digo", disse.

Em uma nova folha de papel eu colei pedaço por pedaço com uma paciência que nem Jô teria. Eu tinha prática no negócio, pois estava vivendo um intenso momento bricoleur e procurava função e significado para tudo, inclusive para as coisas quebradas lá de casa. Aos poucos o enigma deixou de ser enigma. Na verdade descobri que não eram vários bilhetes e sim um único pedaço de papel que continha observações nada cordiais a respeito de uma outra garota da classe. Confesso que fiquei surpresa ao descobrir que o motivo dos risinhos suspeitos era os peitos avantajados da Maria Boa Morte, a manda-chuva das puritanas CDFs.

Tanto talento, cola e papel desperdiçado por causa de um par de peitos número 50. Minha reação foi imediata e em cadeia. Peguei a folha remendada, segui para o xerox e tirei várias cópias. Em seguida peguei uma outra folha de papel e escrevi:

- "Não gostei do que encontrei na lata do lixo e fiquei pensando se vocês são boas mesmo em enigmas? Para tanto, basta responder se o número decimal infinito 0,999999999....é menor do que o número 1? E o que vocês ganham com isso? Muito. Prometo guardar segredo sobre uma certa garota de peito, mas que ainda se encontra disfarçada de líder de almas perdidas como vocês. O prazo para a resolução do problema é de 50 minutos,ou seja, o tempo da aula de português. Deixe a resposta no mural em frente a porta da classe. Caso contrário a escola inteira vai saber que vocês zombam das amigas pelas costas".

O bilhete foi deixado em cima da carteira da Andréa e no início da aula elas perceberam o que estava acontecendo. Dava para ver que as duas estavam em pânico, pois a Maria Boa Morte era uma CDF inveterada e perdê-la como amiga e líder não era um bom negócio. O tempo passava e a dupla não conseguia chegar a um acordo sobre a resposta do enigma. O sinal tocou e elas se apressaram até o mural do corredor para colocar a resposta. Tarde demais. Durante a aula levantei para ir ao banheiro e preguei em todos os murais da escola uma cópia do bilhete maldito. Não demorou muito para que Maria Boa Morte soubesse da traquinagem e virasse a cara para elas. Mas, como eu sabia que elas não iriam responder minha pergunta? Muito simples. Além de fofoqueiras elas conseguiram provar que eram burras, pois deixaram a prova da intriga por escrito na lata do lixo. E tem coisa mais ilógica que isso?

RESPOSTA: O NÚMERO DECIMAL INFINITO 0,999999999 É EXATAMENTE IGUAL A 1. ISTO PODE SER PROVADO DE VÁRIAS FORMAS, MAS O EXEMPLO QUE EU MAIS GOSTO DE DAR É QUE UM TERÇO DO NÚMERO ACIMA É 0,333333333. SE O MULTIPLICARMOS POR 3 TEREMOS 0,999999999 QUE É IGUAL A 1.

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