POR TRÁS DA MÚSICA
Talita Salles

Ela desceu do carro e eu a segui. Sabia para onde íamos, meu coração ia apertado. Em meu pulso estava preso um anzol, enrolado e enganchado sem ferir-me, porém a me incomodar. Reduzi o passo e ela se dirigiu ao rapaz dos olhos castanhos antes que eu pudesse abrir a boca e dizer "a...". O sorriso no rosto dele era sarcástico, o dela era de adoração. O anzol de quatro dentes arranhou a pele quando procurei libertar-me, e tentei de novo e mais uma vez, cada vez um leve arranhão, até que puxei com jeito e soltou-se. Porém meu pulso verteu sangue na tentativa. O mundo estava distorcido, minhas pernas bambearam, olhei em frente. Estávamos nas quadras de basquete. Eles haviam surgido por lá.

A boca e o rapaz observaram-me e me acusaram de suicida, sarcasticamente zombando de minha ferida em sangue, ácida e amigavelmente destruindo minha fragilidade. Num segundo perene. Momento imperceptível contido num olhar de estranhos conhecidos. Ela não percebeu. Tornei-o foto, onde podia vê-lo melhor. Nunca havíamos nos encontrado. Mas ele sabia. E eu. E o sangue foi estancado por um curativo dele.

Andamos, nas quadras agora do colégio, tempos tão presentes. Deixei o anzol na grade externa, alcancei-os. O que via? Uma horta, uma grande, incomensurável horta? Plantas crescidas, desenvoltas. Uma vida em seu ápice, milhares delas, com duas mães a cuidar. Pensei em meu anzol. Machucaria alguém, longe de mim. Ele e ela e ela e ele se olhavam e ele se virou para mim e disse: "Preciso... pegue o globo e o que há dentro..." Eu soube. Um presente, para aquela que me consolava, a quem eu consolava e machucava. Porém havia mais. "... eleve o volume da música ao máximo. Só." Sorri, e ele sorriu. Sem sarcasmo. Saí. No caminho, meu anzol no meu bolso.

Da janela, eu a vi. Linda, brincava e ria com os outros, que outros? Quem quer saber. Mas não ria tudo, ria sem mim. Ela, outros, jardim. Porém meu agressivo e ágil irmão carregava o planeta e percebeu. Abriu. Tirou. Eu vi, ela viu, fora-se a surpresa. Um objeto a que ele deu uma tarefa: fazer bolhas de sabão. As bolhas vinham em mim, não nela, e eu me senti afogar. Agora? Restou-me tomar o objeto, soprar nela, alegrá-la! Que linda alegria, que maravilhosa inocência, o prazer de estar em meio a pequenas e frágeis e coloridas bolhas pelo ar. Senti-me dela. Porém havia meu irmão. Que voltou com algo similar, porém uma explosão. Uma bolha, imensa, colorida, única, o sonho das borboletas! E feroz, altiva, veloz, puro instinto de agressão e mágoa. Tomei dele e atirei nela. Ele e ela. E eu? Me fui derrotada. Que mistério? Ela não sorriu. Meu anzol no meu bolso. Temi por meu irmão.

Houve então uma música. Uma música, um som, uma melodia do silêncio, ou quase. Trazia paz ao universo perturbado de dor e estupefação. Um outro pediu um volume alto. Minha respiração congelou, minha vida morreu e, no meu desespero de morte, corri. Aumentei o volume, ouvi "Tuiiiii... tuiiii... tuiiiii..." Era o princípio de algo, porém secreto. Meu. Para mim ou para alguém. Ou para a Ela. Mas, no momento, meu. Reduzi. Ouviriam a música, a música que ocultava. O som do silêncio. Ou quase.

Foi quando o rádio tocou, uma música, bela. Conhecida. Porém realmente vazia. E eu já vivia no mundo, meus sentidos despertos. Aquilo? Nunca mais. Restou-me o enigma no fundo da alma. E um anzol no bolso. 

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