FIDELIDADE, MEDO E CONTROLE
Reinaldo de Morais Filho

Todas as noites que posso, encosto a cabeça na parede branca-lisa-delgada que separa o meu quarto do cômodo aconchegante da minha prima.

Ouvir o silêncio soturno que de lá ecoa translada a meu peito os sentimentos sempre dolorosos que aquela donzela carrega em seu peito.

Uma jovem que fere os seus desejos por temer realizá-los, por evitar macular a imagem dócil que seus pais nela fizeram presente. Uma mulher que se faz criança, que esconde os desejos, que se aprisiona dentro de si mesma.

Somos uma família tradicional, cuja riqueza nos obrigou ao conservadorismo, como uma faceta ignóbil da superstição que domina a vida do chefe todo-poderoso meu avô, o patriarca que construiu o imenso patrimônio a partir do nada, por dedicação e respeito às regras que ia criando.

Por tais e fortes motivos, escondo a sede que meus olhos negros adolescentes nutre pelos contornos belos daquela moça sob o manto frágil das sobrancelhas, sob as chagas que ainda marcam minhas costas com o couro derretido que as queimou quando fui descoberto observando uns meros traços nus que atravessavam a fechadura do banheiro.

Os homens criaram uma sociedade com credos, comportamento e ideais definidos, sem saber que estes mesmos - fé, rotina e ideologia - mudam ao sabor dos ventos, ao sabor do tempo. E ainda que no mesmo tempo, olvidam que a maioria que decide não significa todos, e a minoria, ainda que minoria, merece ter seus desejos realizáveis.

Desde que não houvesse agressão, deveria ser permitido o mais sujo e asqueroso prazer, pois a sujeira e o asco não são adjetivos auto-explicativos, dependem de quem vê, ou da forma que são expostos.

No passado, nem mesmo teria o deleite de observar na minha prima as suas pernas roliças, leitosas, sem pêlos, sem escamas, sem pecados. 

Tampouco teria em meus dedos o seu corpo delicado, quase desnudo, quando ela deita-se na piscina em um biquíni mínimo - embora comportado - e me pede para lhe passar um creme gelado que torra no contato com sua pele.

Os homens criam dogmas, para posteriormente serem ridicularizados. E nenhum outro tanto será quanto meu avó, nos termos em que obrigou a família a engolir as suas normas, a viver em um mesmo teto: dois filhos, quatro netos.

E a mesma preocupação em preservar as tradições fez brotar ao seu lado a mais perigosa planta daninha. A cada dia esqueço um tanto da realidade, que me fez primo da mulher que amo, que me fez mais moço que ela, que me fez fiel aos princípios em mim insculpidos por aqueles que me governam.

Posso ver em seus olhos que, embora não haja o ímpeto semelhante em me buscar, existe o gosto pelo pecado lastreando seus meigos lábios, que talvez seja o mesmo que esconde-se em mim sob a égide de um amor forçoso.

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