Atualização 062 - EM CIMA DO TELHADO
BIOGRAFIA
TEMPORADA DE CAÇA AOS GNOMOS
Bárbara Helena
Armei o fuzil, acertei a mira e me ajeitei no telhado. 

Eles costumam aparecer assim que a noite cai, quando o sereno começa a ensopar as folhas. Alguns andam em bando, mas a maioria prefere o trabalho solitário. São estes que preciso matar. Os que destroem o sono e impedem a vinda do dia tranqüilo.

Há um perfume excessivo no ar, damas-da-noite, flores que, como eles, não se deitam na hora do sono, mas despertam para infernizar quem precisa dormir. Elas recendem mais do que normal, logo hoje que preciso de todos os sentidos despertos.

O telhado não é um local confortável para esperar. 

E a escuridão parece opressiva no tempo do aguardo.

Outras damas da madrugada passam em bando, rindo, com colares e brincos que iluminam a noite. Logo se enfurnam em portas de luzes vermelhas, para onde os homens irão, como carneiros, atrás delas.

É tudo culpa dos malditos. Cada pequeno desvio é serviço deles.

Quando leite ferve e se espalha pelo fogão, empesteando a casa com seu cheiro azedo. Quando o gato queima o rabo na lareira, quando as crianças não querem sossegar e as mulheres ficam com o diabo no corpo exigindo a lua. Tudo culpa dos pequenos.

Porque não apareceram ainda?

Será que pressentiram meu vulto aqui, à espera deles? São espertos os danados. Mas não... a escuridão é minha aliada e com esta capa negra, o chapéu e a máscara fico invisível na noite sem lua. 

Tenho câimbras na perna direita sobre a qual apoio meu corpo ajoelhado. Tento me ajeitar, um pedaço de telha se desprende e vai cair lá embaixo com um barulho seco. Meu coração se acelera, mas nenhum ruído percorre a rua silenciosa. Volto a me ajeitar com cuidado.

Estou aqui há uma hora e nenhum deles apareceu. É sempre assim. Quando se está preparado, a coisa desanda. 

Tudo culpa deles.

Acordo com as risadas. Meninos, lá embaixo, olham em direção ao telhado. Estão indo para o colégio, vejo seus uniformes todos iguais e riem de mim. Faço um sinal obsceno e um deles joga uma pedra que quase me acerta o polegar. Repito os sinais, agora enfurecido, mas apenas riem mais forte e vão embora. Desgraçados. Também é culpa dos pequenos esta vileza.

Por isto estou aqui, esperando para caçá-los.

Pessoas passam na rua apontam para mim, riem e brincam. Acenam. Percebo que alguns estão preocupados.

Idiotas. Sei o que estou fazendo e não me importo com críticas ou medos. 

Depois vieram os bombeiros, a polícia, todo o bando de ineptos querendo me tirar daqui. 

Mas eu não saio.

Ao fim de alguns dias, desistiram. 

Depois de semanas já nem olham para mim. Acostumaram-se com minha figura no telhado. Almas caridosas me oferecem comida e aceito porque preciso viver para minha missão.

Todo este tempo e nenhum dos pequenos apareceu!...

Perceberam, sem dúvida, o alarido do povo. Ou meu vulto contra a lua cheia.

Já estou há tanto tempo neste telhado que nem sei mais quem sou. Mas lembro do fuzil ao meu lado, enferrujado pela chuva e pelo sereno e toda a noite ajeito a mira gasta e aponto para a rua escura.

Sinto o cheiro dos gnomos ao meu redor. Sei que estão aqui, rindo de mim, só que não posso vê-los. Continuam desandando o leite e atormentando as gentes mas não desistirei.

Continuarei aqui, sobre o telhado, a espera de um descuido.

Então matarei um deles e minha vida, enfim, terá sentido.

Hoje, quase não consegui erguer o fuzil para apontá-lo na direção certa. A vista também não é mais a mesma. As feridas provocadas pelo atrito contras as telhas infeccionaram outra vez. Não tenho mais fome e o alimento, que ainda depositam para mim, apodrece ao meu lado. Sinto um cansaço imenso e só o hábito me mantém segurando a arma e esperando a hora.

Talvez eles nunca cheguem. Talvez não existam gnomos.

Talvez a vida seja sem sentido.

Mas permaneço aqui, em cima do telhado, a arma engatilhada, esperando o improvável milagre.

E assim me encontrarão os que vierem depois de mim nesta caçada.

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