MAROTINHO
Fernando Zocca

Com feedbacks marotos, a potestade arreliava os miolos do interlocutor desavisado. Seu cérebro estava adstrito, constrito e quente com aquelas palavras todas. O ataque fora de surpresa igual aquele a Pearl Harbor. Mas não tinha nada não. O mundo dava muitas voltas. Nada como um dia depois do outro.

Por isso a vítima reuniu sua munição e mandando goela abaixo um tremendo "rabo de galo" pensou consigo mesmo: "Detonarei a filosofia toda. Não sobrará página sobre página." Acertou o amarrilho daquele sapato velho carcomido e buscando uma sombra na rua inundada pelos raios solares tórridos, pôs as pernas velhas pra trabalhar.

A maldita calçada, em certos trechos, tinha crateras enormes. Em algumas cabia o prefeito e todo seu secretariado paquidérmico.

Era só o que faltava! Lá vinha um daqueles carros de som especialmente inventados para desmilingüir o tutano dos adversos. Realmente estava difícil viver naquele segmento do mundo. O pregão dizia: "Olha a pamonha! A pamonha que não se acaba! Aproveite minha senhora. É a famosa pamonha que não se estraga."

A vítima, pensando nos algozes, equilibrava-se entre os obstáculos que lhe embargavam o caminho. Eram pedras, bancas de jornal, carros mal subidos e os indefectíveis carrinhos de hot dog. A visão daquela salsicha enorme, vermelha e quente acendeu-lhe a lembrança de uma cunhada sua que viera de longe e, com fome, imprudentemente, ingerira um daqueles sanduíches do demônio, a venda na praça central. O amarelo da sua pele, depois de algum tempo da deglutição, indicava icterícia e infecção intestinal com diarréia exaurível. Foram momentos terríveis.

Mas o pior não podia ser aquilo. O pior eram os conceitos daquele untuoso funcionário público aposentado que se dizia presidente do clube dos escrevedores. Aquilo era nefasto igual às teorias de Eugem Bleuler e seu colega Allen Karpet. Ambos, durante o passar dos anos, ergueram milhares de castelos onde os homens perdiam suas almas. Eram os fabricantes da loucura. Eram os que criavam os mitos sobre as doenças mentais. Eram os que coadunavam a ideologia politica com as afecções nervosas.

Lembrou-se das palavras de Thomas S. Szasz no seu livro "Esquizofrenia. O símbolo sagrado da psiquiatria", Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1978: "Quando um pastor abençoa a água converte-a em água benta. Desse modo a torna portadora dos mais benéficos poderes. Analogamente, quando um psiquiatra amaldiçoa uma pessoa, converte-a num esquizofrênico. E assim a torna portadora dos mais maléficos poderes. Tal como "divino" e "demoníaco", "esquizofrênico" é um conceito maravilhosamente vago em seu conteúdo e terrivelmente assustador em suas implicações."

A tese poderia embasar, como de fato embasaria, ações de reparação de danos morais e materiais contra os proprietários das clínicas psiquiátricas etéreas. Os joanetes clamavam por trégua. Eita! Falanges safadas! Sentou-se num dos bancos daquela praça cinza e seca.

Na sua pasta a lista dos interessados na propositura da ação continha mais de 869 assinaturas. Seria uma guerra memorável. Teria batalhas horríveis. As de Midway e Gadalcanal seriam fichinhas. No fim, muitos poderiam dizer, ufanados, que tinham sido heróis.

Percebeu um sorveteiro que o avistou. Aguardou sua chegada. Ele empurrava um carrinho do qual, amarrado toscamente, pendia um radio a pilhas. A melodia antiga dizia: "Ei você aí! Me dá um dinheiro aí! Me dá um dinheiro aí! Não vai dar? Não vai dar não? Você vai ver a grande confusão..." Bem, esse era um ponto pacífico, do qual não podia restar dúvidas: Todos precisavam do dinheiro para a sobrevivência sua e a dos seus.

Não é verdade? E o que teria você a dizer nesse caso, meu querido, bem-amado, caro e grande irmão?

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