FACA DE VÁRIOS GUMES
Bárbara Helena

 
 
 
 
Alfredo,
 
 
Eu nem acreditei quando tu me escreveste depois de tanto tempo. 
 
Estava até esquecendo de sofrer. 
 
Nunca mais te vi no baile do Enchanted com aquela fantasia de diabo e o tridente que espetava todas sem distinção de idade ou estado civil. Nunca mais freqüentaste a sinuca, não te encontrei no carteado do Aranha. Nem o Motel Beira-Mar tens freqüentado.
 
Cheguei a pensar que havias tido um surto qualquer e virado crente. Já te via gritando “Aleluias”, batendo no peito e recebendo um diabo bem safado porque disto dificilmente abririas mão. Sei como gostas de um teatro, meu moreno e não há pastor que consiga segurar o teu encosto. Te imaginava de Bíblia na mão, pregando Jesus te ama, falando em sangue de Cristo, logo tu que nunca derramaste em vão o sangue da donzelice alheia.
 
Mas não mudaste nada.
 
Estavas só experimentando outros terrenos. Morri de rir quando soube o que aprontaste como cavalo do Exu-Caveira no terreno de Mãe Dinha de Ogum, em Salvador. Só tu mesmo, Alfredo, para arrumar confusão no terreiro do próximo e ainda se engraçar com a mulher do Ogan Maior. Tu me explicaste que foi só um mal-entendido, a pobrezinha estava apenas consertando a cinta-liga e tu, prestimoso como és, só querias ajudar. Conheço teu bom coração com a mulher do próximo e do afastado, Alfredo, ah, como eu conheço! 
 
Agora escreves pedindo para voltar, fico na dúvida. É como faca de dois gumes, coração, não dá para escolher qual menos lâmina. Ficar longe de ti me deixa noite, perder teu corpo apaga alguma luz em mim. 
 
Mas és faca de dois gumes, todos dois cortando, todo os dois ferindo.
 
Eu deveria dizer que vou queimar a tua carta e jogar no lixo, apedrejar cada uma das palavras mentirosas, repudiar tuas cantadas tolas, rir da tua música sempre igual. Eu deveria dizer que vou amarrar cavalos bravos nos tornozelos, me prender na porta e pregar cravos nas minhas mãos traiçoeiras para impedir que eu saia, colocar algodão nos ouvidos e não escutar o canto da sereia. Eu deveria dizer que vou me atirar no precipício mais propício antes de responder aos teus apelos. Eu deveria dizer que vou enterrar meu desejo no mais fundo dos túneis, me cortar de gilete e me arder em fornalhas para impedir meu corpo de atender teu chamado. Eu deveria dizer que vou rasgar em tiras as certezas, estuprar cada uma das perguntas, desdenhar os verbos, rir dos advérbios, me esconder dos adjetivos. 
 
Eu deveria dizer que vou queimar a cama em que dormimos nosso engano, salgar o vinho que bebemos nos odiando, destruir as lembranças do teu arrepio.
 
Eu deveria sim.
 
Mas às três horas estarei esperando teu ônibus lá na praça e nem que cem mil cavalos me arrastassem, nada me impediria de te ver. 
 
Porque ler tua carta mentirosa foi a melhor das receitas para destruir o ser vil em que me transformei sem seu engano.
 
Escutar tuas desculpas é meu vício, coração. Fazer o que?
 
Sou faca de vários gumes - todos eles teus.

 

 
 

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