A FACA DE DOIS LEGUMES
Heringer

Éramos seis à volta daquela mesa, numa noite fria e chuvosa de Agosto. Um de nós fez o gracejo, me lembro bem; alguém pediu uma faca, e ele, atendendo, brandiu a lâmina no ar, dizendo “Tome aqui uma faca afiada, de dois legumes”. Todos riram muito, desavergonhadamente, menos eu... e ela. O dito era velho e muito conhecido e não seria capaz, por si próprio, de arrancar, dentre nós, tantos risos assim, apenas por misturar gumes e legumes, mas, ali, o contexto era outro. Ela não riu justamente por não compreender, e eu, por achar aquilo infantil. Mas, no grupo, dizia-se à boca pequena, com aquela maledicência típica dos que buscam motivos tolos para se rir dos outros, que ela, a nossa anfitriã, oferecia aos seus convidados de garfo e mesa, sempre os mesmos legumes: cenoura e beterraba. Estes se tornaram, por essa razão, a sua marca registrada, e sem que ela soubesse; o grupo fazia chacotas com esse detalhe fútil e pueril.

Diana era uma pessoa maravilhosa - um doce de criatura! Ainda que a imperícia com o fogão e com algumas etiquetas fossem lendárias, o seu grande coração, compensava em muito os deslizes com esses pormenores. Pormenores sim, porque eu nunca me importei com eles; preferia antes, a atenção que ela nos dispensava, ainda que em detrimento de guloseimas e quejandos. Às vezes, até me esquecia de comer, concentrado que estava nas conversas que rolavam naquela casa, e que ela tornava ainda mais interessantes, com observações sutis e inteligentes.

Solteira, sem filhos, morava só e isso nos preocupava. Um apartamento seria mais conveniente – nós vivíamos tentando convencê-la disso. A casa, embora pequena e sem ostentação, carecia de segurança, o que ela insistia em negar, dizendo que a rua era tranqüila e a vizinhança agradável. Houve uma vez em que ela cedeu aos nossos insistentes pedidos e permitiu-se, pelo menos, dividir a moradia. Não durou um mês e lá estava ela, de novo, sozinha, dizendo que assim era melhor, que já estava velha e cheia de manias... e que ninguém a suportava... e por isso ela se fora. Penso que foi ela quem despachou a outra.

Agora, diante do caixão, onde o seu corpo jaz, frio e quieto, eu me culpo de não termos sido mais incisivos e cuidadosos para com ela. E por ironia, volta-me à mente a faca que nos serviu de pretexto para as piadinhas tolas daquele encontro. Esta mesma faca fora encontrada cravada em suas costas, após um assalto insano e desprovido de qualquer sentido.O ladrão, não encontrando nada de grande valor, tirou-lhe a vida, um bem inestimável, que nos pertencia a todos. E agora, olhando à minha volta, vejo o sofrimento estampado nos olhos de todos os seus amigos. Estamos privados do seu carinho e atenção, e para sempre. Isso é o que mais dói, saber que não tem volta. Despedidas são dolorosas mas sempre existe a possibilidade do retorno. A morte destrói tudo isso. Talvez, se eu fosse um pouco mais crédulo, encontrasse na fé a esperança que tantos parecem ter de voltar a ver, nalgum céu, seus entes e amigos queridos. Mas não sou!

A morte tem me perseguido. Tenho apenas quarenta anos e já não me bastam os próprios dedos das mãos para contar os amigos que perdi, ceifados por ela. E percebo que me ronda ameaçadoramente. Não a temo, mas não gosto desta proximidade. Não tenho a intenção de morrer por ora. Ainda há muito que ver. Recordo-me agora de um outro velório, onde alguns filosofavam sobre o tema – quase que inevitável nestas ocasiões – e alguém disse que tudo se acabava assim, não havendo mais o que esperar. Espantei-me com a reação tempestiva e indignada de um outro, que irado, esbravejava dizendo que não concordava com aquilo, e que se fosse desta maneira, não mais queria continuar vivendo. “Não brinco mais...”, eu pensei comigo, escutando aquela conversa maluca. Era isso o que ele parecia querer dizer:: ...se tudo acabava assim, então não queria mais brincar.

Eu também não concordo com quase nada que percebo ao redor: mortes, dores e injustiças. Mas me sinto muito só e desamparado, pois infelizmente não sei a quem reclamar. Se achasse o responsável por tudo isso eu teria uma briga feia com ele, enquanto não me explicasse direitinho por que razão deixava que assassinassem pessoas boas e gentis, como esta amiga que agora dormia, ali, à nossa frente... eternamente.

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