PEQUENO MUNDO
Nato Borges

Lembrança era algo que não tinha. Não lembrava, nem concatenava idéias ou frases ou letras. Inventava pensamentos sem qualquer sentido. Enxergava sentidos onde não sentia mais nada. Na frente, no alto ou embaixo. Só paredes. Só as paredes e aquele túnel lá no alto, sempre muito estreito.

Tinha outros, mas não eram como ele. Apareciam de vez em quanto, entravam pelo alçapão. Achava que eram anjos, pela cor dos mantos. Achava que eram santos, pela dificuldade da língua. Achava que eram bons. Sempre traziam as balas. Adorava as balas. Não eram doces, mas eram balas, eram coloridas e vinham sempre em parzinhos.

Tinha vez que deixavam o alçapão aberto e uma feia vinha buscá-lo. Não gostava. Não gostava da feia e nem do clarão que vinha na cara, sempre que ela aparecia. Mas não podia escolher. Preferia ficar ali olhando o túnel. Por ali via mais outros ainda, mas do outro lado de outra parede. Aqueles não eram anjos, via pela cor das mantos. Nem eram santos. Mexiam a boca, mas não tinha som. Também não deviam ser bons porque nunca lhe deram nada.

Preferia isso. Mas a feia aparecia. Tinha dias que estava mais feia que outros. Outros até mudava de cor. Mas era a mesma. Sempre o arrastava pro clarão e para um lugar onde as paredes ficavam longe, muito longe. Não encontrava um canto. Em todo canto tinha um outro. Eram outros que pareciam com ele, mas sabia que não eram ele, porque nunca estavam no lugar das paredes estreitas.

Ficava em pé no clarão até a feia aparecer de novo e levá-lo de volta. Aí ficava aliviado. Eram suas paredes e o seu túnel lá no alto. Outros dias, mas estes eram menos, a feia voltava e, ao invés do clarão, o puxava para um outro lugar. Daquele gostava. As paredes eram mais próximas, mas ainda assim maiores que as suas. E ali não tinha outros nos cantos. Podia escolher o canto que quisesse. 

Ali sempre tinha uma. Não achava feia porque nunca o puxou prá lugar nenhum. Sempre que ia pro lugar das paredes com cantos vazios, aquela estava lá. Ficava ali, olhando prá ele enquanto escolhia um canto. Quando se aquietava, ela vinha e ficava ali com ele. Tinha vez que olhava prá ela também e ficava preso no olho dela, naquela cor de uniforme que saía do rosto dela. A feia parecia que não tinha olho.

Aquela era gostoso de olhar. Achava divertido. Era só ficar olhando, e olho molhava. Molhava de escorrer enquanto ele olhava. Um dia experimentou não olhar e viu que não molhou. Riu demais. Voltou prás suas paredes e entendeu porque a feia parecia que não tinha olho. Ela escondia dele, prá não molhar também. Era isso. Tinha o poder de molhar os olhos dos outros.

Aquela o divertia tanto que nem se importava dela pôr a mão nele. Mas era de leve. Por isso não ligava. Ela ficava ali, molhando o olho e esfregando a mão nele, bem de leve. Na dúvida, achava que podia ser santa também. Falava baixinho de não se entender nada. Mas tinha certeza que não entenderia mesmo se ela falasse bem alto. 

Um dia tentou falar com ela, mas a feia apareceu e o levou embora. Nunca mais tentou. Aprendeu a não tentar falar com os santos. Eles estavam ali só prá olhar e molhar os olhos. Até que sumiam. Aquela sumiu um dia. Também, estava cada dia menor, mais amassada. Não a viu mais. Achou ruim, porque não foi mais prás paredes que não tinham ninguém nos cantos.

Um dia viu que estava se amassando também. Achou que era a tábua de deitar e resolveu não deitar mais, prá ver se arrumava. Ficava ali, olhando os outros do outro lado da parede de fora do túnel. O joelho doía, mas ele não deitava. Preferia doer a se amassar. Seus pés ficaram gigantes. Nunca os vira tão grandes, mas achou que estava certo. Cresceram e ficaram lisos. Não se amassavam mais. Era questão de tempo, e ficaria todo liso de novo.

Memorando interno: "Inácio Brotas, interno desta clínica, foi encontrado morto esta manhã, recostado à parede de seu quarto. Brotas era paciente desta clínica há 45 anos, sofria deficiência grave e, ao longo deste tempo, não há registro de qualquer forma de comunicação estabelecida entre o paciente e os médicos, enfermeiras e outros internos. O único incidente grave registrado em sua ficha foi um acesso de violência em maio de 1978. O paciente, aos gritos, foi contido pouco antes de atacar sua mãe. Solicitamos necropsia para determinação da causa da morte e demais providências".

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