EXTREMA UNÇÃO
Beto Muniz

 
 

"Vaso ruim não quebra! Deus nem precisa proteger". Lembro de ter ouvido a frase quando tinha seis anos. Quem falou foi minha avó, por ocasião do atropelamento do meu tio bêbado. O sujeito estropiado na calçada e ela, cansada de lavar seus vômitos e urinas, disfarçou a preocupação.

Na época eu não sabia dessas coisas, mas hoje, analisando o contexto, tenho certeza de que se ela estivesse indiferente não teria se abalado até o portão numa urgência incompatível com seus cinqüenta e poucos anos, e blasfemado somente após ver seu filho se levantar e, resvalando pelo muro, entrar e se lavar no esguicho que ela abandonara aberto no jardim de rosas.

O atropelamento não deixou traumas maiores. A pele do meu tio se recuperou logo das pequenas escoriações, mas a frase ficou em minha mente e pouco tempo depois, quando meu outro tio caiu da laje e faleceu, uma segunda frase se juntou à primeira e as duas determinariam o rumo que eu daria a minha vida: "Os bons morrem cedo, Deus leva primeiro".

Achei estranho o choro da família. Para mim, o morrer, que associei ao caixão de madeira envernizado e forrado com tecido roxo, era lindo! O brilho arroxeado na forração era muito mais que lindo. Fiquei encantado muito tempo. Só fui descobrir que não havia beleza alguma na morte quando vovó morreu. Eu não chorei. Fiquei o tempo todo quieto, hipnotizado pelos reflexos das velas acesas brilhando no cetim roxo. "Os bons Deus leva primeiro" martelava minha mente. Questionava o motivo d'Ele ter levado minha mãe durante o parto. Ela era tão boa assim? Melhor que vovó? Então era uma santa.

Eu adolescia quando fiquei sozinho no mundo. Na dúvida, tracei um caminho e bem depois, quase adulto, fui perceber que meus entendimentos das coisas estavam equivocados. Mas era tarde demais para reparar minhas escolhas e modificar o rumo pelo qual enveredara. Eu já estava perdido.

Não pretendo culpar vovó, que sempre falou o que lhe vinha à mente, nem filosofar sobre as conseqüências do meu primeiro contato com a morte - nunca mais vovó deixou que eu empinasse pipa em cima da laje. Mas a minha avó foi uma inconseqüente proferindo sem pensar todas aquelas frases feitas, e eu um tolo por tomá-las como verdades.

Vaso ruim também quebra, e tanto o velho bondoso quanto o pivete malvado morrem indiscriminadamente. Agora é minha vez de ir pro inferno. Estou quebrado. Três tecos, Padre! Eu mereço, sei que mereço cada furo desses no meu peito, por isso não adianta o senhor vir com essa ladainha de que confessando os meus pecados Deus perdoa. Eu sou ruim, muito ruim padre, e não é uma confissão que vai apagar a crueldade que desenvolvi no decorrer dos meus vinte e seis anos. Foi tudo um engano, Deus é testemunha, e a única verdade que pode me redimir é que me tornei ruim por ânsia de viver, ou melhor, para não morrer cedo.

 
 

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