SEM NOÇÃO
Antonio Rodrigues

"E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial
E que está contribuindo com sua parte
Para o nosso belo quadro social"
(Ouro de Tolo - Raul)

Foi preciso uma mosca pousar nas pálpebras semi-cerradas, esfregar as patas no orbe ocular, andar pra lá e pra cá, rebolar até, para que então se apercebesse ali, parado ali, sozinho ali, esperando sabe-se lá o que, o cinto apertando-lhe a cintura, os tornozelos, o pescoço, a cabeça, tudo se exprimia, tudo se contorcia, tudo se dissolvia, dissolvia-se como a lesma que desgraçadamente teve seu primeiro e irremediável contato com o sal, já não podia correr, já não podia gritar, já nem podia morrer ou quase isso.

Foi preciso que um elefante voador caísse sobre seu corpo fétido e lhe arrebentasse cada um dos mais de duzentos ossos para que então experimentasse da redenção que só a dor pode ofertar, ainda que ninguém presenciasse esta hora, ainda que ninguém pudesse ouvir aquele grito agoniado, aquele grito pra dentro, tão dentro que nem eco fez e se fez foi no deserto de sua existência pra dentro, tão dentro que jamais se soube das coisas que haviam do lado de fora, da existência que tem por regente o incansável relógio.

Foi preciso que o amor lhe enterrasse no coração uma estaca em formato de cruz para que então se esquecesse de sua última quimera e que os renegados e falsos amigos viessem cedo batizar-lhe a solidão, cuspir-lhe a cara, agraciar-lhe com o mais absoluto sabor do desprezo e depois acender, porque era preciso, antes de irem embora, uma fogueira em volta do seu corpo, fogueira cuja luz bruxuleante dava-lhe a exata medida de seu universo limitado pela treva e cujo fogo avançava rápido, alcançava suas vestes, sua pele, seus medos.

Não se sabe por que motivo, mas foi preciso. A resposta a tudo isso, não no cume calmo do olho que já não via nem na linha da pálpebra fechada que não tremia, mas talvez no papel amassado na palma da mão que já não mexia: "Eu é que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar, porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais, no cume calmo do meu olho que vê, assenta a sombra sonora dum disco voador".

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