CORTINAS DE CHUMBO
Flora Rodrigues

Sinto um peso involuntário sobre as pálpebras. Luto. Não quero ceder. Tenho um longo caminho a percorrer. Não, não pode ser. Tenho tanta coisa por acabar. Tantos livros para ler. Tantos lugares por conhecer. Músicas novas por ouvir. Textos por escrever. Cartas por responder. Mais um pouco e começo lentamente a ceder. As pálpebras começam a pesar como se de cortinas de chumbo se tratassem. Luto. Abro-as repentinamente. Um café! É isso. Bebo um café, fumo um cigarro. Ainda tenho muitos filmes para ver. Quilómetros e quilómetros por percorrer. Só não sei por onde começar. Lembro-me de todos os pratos que quero provar. As paisagens que quero apreciar. Quero sair para dançar. Quero–me ir divertir e celebrar a vida do nascer ao pôr–do –sol. 

Não! Não! Não posso ceder! Forço, luto, mas pesadas como cortinas de chumbo empurradas pela força da fadiga as pálpebras cerram-se sem que eu consiga vencê-las.

Fui de novo vencido pelo sono, pela fadiga. Mas eu não queria dormir e perder tanta coisa que continua a viver, enquanto me encontro nessa letargia. Já sei: vou procurar o segredo que vença o sono. 

Investigo anos sem parar. Só paro para dormir. Mas vou recuperar o tempo perdido quando encontrar o remédio mágico que vença o sono.

Fantasticamente descobri o segredo da vigília contínua. Guardo-o só comigo.

Vivo em euforia total os primeiros dias e até os primeiros anos.

Depois, depois... recordo com mágoa os dias em que as minhas pálpebras pareciam cortinas de chumbo e eu sem querer, adormecia profundamente. Invejo o sono dos inocentes. Já se passaram décadas desde que venci o sono e hoje nem tão pouco me consigo recordar da sensação de dormir. Os meus cabelos estão todos brancos e eu estou demasiado cansado. Demasiado cansado para ler, para escrever, para dançar, para sair, para fazer seja o que for.

Não luto mais. Limito-me a esperar o nascer e o pôr - do – sol, e olhar as estrelas do firmamento. Já nada mais me resta. Apenas o tormento, o sofrimento.

Sinto uma aroma forte e gostoso de café enquanto um raio de sol entra furtivamente pela janela e brinca no meu rosto. As cortinas de chumbo descerram-se sem esforço, e as minhas pálpebras iniciam os primeiros pestanejares. Levanto-me lentamente. 

Doem-me as costas. Deixei-me dormir sentado na secretária. Não quero acreditar. Procuro um espelho avidamente. Olho e apercebo-me que estou exactamente igual, os meus cabelos não estão brancos e o tempo ainda não deixou as suas marcas no meu rosto.

Procuro um relógio. Ainda é cedo, muito cedo, para um sábado de manhã. Volto para a cama. Afinal preciso dormir, passei tantos anos sem o fazer...

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