DR. GOD
Luís Valise

 
 

A noite foi entrando aos poucos, e logo a sala era invadida por uma penumbra cálida, como um gato gordo que se deita sobre nossos pés. As primeiras estrelas jogavam beijos brilhantes. Início de verão, uma algazarra de insetos em vôos de acasalamento. Godofredo achou melhor fechar a janela. O brilho das estrelas, o namoro dos pirilampos, tudo aquilo acelerava sua bile, deixava sua boca ainda mais amarga, se é que isso era possível. De passagem pela cozinha, deitou três dedos de Água Tônica num copo e jogou dentro um punhado de Sal de Frutas. A mistura tenebrosa pareceu-lhe levemente adocicada. Em breve sentiria o ventre inchado de gases, e a seu bel-prazer, silenciaria a festa dos insetos, e faria murchar o brilho das estrelas.

Deitado no sofá, abandonou o livro ao fim do primeiro capítulo. Vinte e oito páginas e nenhuma morte, aquele era um livro para maricas! Pensou no seu passado, este sim daria um livro! Lembrou com saudades de um tempo nem tão remoto, quando era voluntário num grupo paramilitar que reprimiu os "vermelhos". Ah!, se pudesse escrever sobre isso... Estudantes (baderneiros, isto sim!) metidos a reformadores do mundo, conheceram seu devido lugar depois de passarem algum tempo confessando, por bem ou por mal, o funcionamento dos grupos que tramavam a derrubada do poder das baionetas. Por trás das pálpebras cerradas corria uma procissão de imagens dos corpos pendurados no pau-de-arara, jacarés de metal mordendo peles sensíveis enquanto a manivela do choque era girada. Sentia falta daquilo, daquela excitação! Poças de excrementos e urina se formavam sob os cavaletes. Às vezes, um exagero na dose, uma parada cardíaca, e toca simular um combate ou um atropelamento ou um suicídio. Mas isso era raro, e no mais das vezes bastava arrastar de volta à cela um corpo quebrado pelo castigo, e prometer antes de fechar a porta: - Amanhã tem mais.

Não queria abrir os olhos, para manter o tempo aprisionado dentro do seu olhar escurecido. Se abrisse os olhos daria de cara com a falta da mulher, talvez até ouvisse sua voz se queixando do seu humor incandescente. O Torquemada do asfalto se deleitava com a própria fúria. Por vezes pensava abandonar tudo e se enfurnar no mato, um sitiozinho na beira de um rio... Mas a paz é fruto de delicada arquitetura interna, e o mais provável seria a transmutação da neurose urbana em idiotia rural. Se ele soubesse sorrir não estaria sozinho, mas sorrir era para os fracos, os mulherzinhas, os bêbados. Ele tinha um codinome a zelar. Nos porões do sistema foi conhecido como Dr. God. Senhor da vida e da morte, dono da verdade, da sua verdade, a única que importava. Por detrás daqueles olhos cerrados a vida ardia em festa.

Amanheceu, mesmo contra a vontade do Dr. God. Era domingo. A praia deveria ficar cheia de corpos semi-desnudos. Godofredo gostava de sentar na areia, escolher alguém, homem ou mulher, não importa, e imaginar como reagiria sob seus cuidados. Quanto tempo aquele agüentaria na porrada... Como aquela enfrentaria o estupro... Ia sempre com uns calções folgados, para que ninguém notasse sua ereção. 

Antes de deixar o prédio, conferiu cuidadosamente os arredores. Em seguida deu de ombros: olha a paranóia, meu velho, olha a paranóia! Pôs os óculos escuros e saiu em direção do bar da esquina. Longe, alguém ligou o motor de um carro, e saiu lentamente do meio-fio, confundindo-se com os outros carros estacionados, como uma cobra deslizando por entre pedras coloridas. Godofredo tomou um café puro e acendeu um cigarro. A língua grossa e amarelada tinha gosto de fel. Começou a atravessar a avenida. Quando estava no meio da rua já era tarde demais. Olhou para o lado esquerdo justo a tempo de ver um rosto furioso atrás do pára-brisa. Tentou lembrar de onde o conhecia, mas não teve tempo. Foi atingido em cheio, e arremessado para o alto. Antes de cair retorcido no asfalto já estava sujo de urina e excrementos. O carro não parou, ninguém anotou a placa. Uma roda de curiosos cercou o corpo. Como se lhe adivinhasse a vontade, alguém se ajoelhou e cerrou-lhe as pálpebras. Inútil. Contra a vontade do Dr. God, o sol continuou a brilhar.

 
 

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