CUBA LIBRE II:
A RESSACA

Luciana Priosta

Ri, dancei, ameacei até um strip-tease contido por amigos um poucos mais sóbrios. Foi uma bela bebedeira isso sim! Daquelas em que até o pivete que lhe pede um troco para não tomar conta do seu carro torna-se amigo confidente e querido. Ora, quem nunca teve uma noite assim? Fica tudo azul, a luz azul, o copo azul, até as pessoas ficam azuis! Ok, se os mais criteriosos não concordarem com o tecnicolor. Os hipocondríacos podem ver tudo amarelo então (depois que morrer acho que não vai dar para ser doador de fígado...). Os mais ardentes, vermelho (aúúúúúúúú’!). Ou ainda tudo branco para os desmemoriados (mentira, não beijei a boca da Tonha Caolha não!). Que importa a cor? Todos já tiveram uma noite dessas. E se disserem que não, é mentira. E se for verdade, me apresentem o cidadão que dou um jeito nisso já.

Abri um olho, depois o outro olho, depois outro e depois outro. Não. Não sou nenhuma entidade biológica extraterrestre com mil olhos. É que manter as pálpebras erguidas, e ao mesmo tempo!, era-me um custo. A cada tentativa uma grande bola de luz explodia dentro do crânio. Jurei, como todas as outras vezes, que converteria-me ao budismo, xintoísmo, qualquer ismo que proibisse bebidas alcoólicas. Com esforço sobre-humano, sentei-me na cama, todo meu peso deslocado para a cabeça. Tinha certeza que o centro de gravidade de meu corpo havia sido transferido para algum lugar no leste europeu. A língua colada ao céu da boca só confirmava minhas suspeitas: haviam colocado cimento na minha cuba. 

Estiquei os braços e toquei no corpo ao meu lado na cama. Ouvia o ressonar tranqüilo de meu marido. Me aconcheguei ao seu corpo procurando algum conforto. Um hunf! hunf! veio do corpo deitado ao meu lado e ,para meu desespero, não me soou nada familiar. Uma mão enorme me puxou pela cintura e um rosto quente se afundou no meu pescoço. Abri os olhos o mais que pude. Ao meu lado estava deitado um homem muito grande, pele curtida de sol, sorriso claro e maroto, braços enormes. Pulei da cama feito boneco de mola. Aquele não era meu marido!

- Acordaste! Me perdoe, beicinho, fiquei te esperando e acho que cochilei. 

- Quem foi que... que diacho você... De onde diabos você saiu? 

- Não saí ainda não, tou só te esperando. 

- Esperando? Esperando o que criatura? 

- Calma, calma. Como dizer isso de modo suave? È que tu morreste. 

- Como assim, morri? 

- Escorregaste, bateste a cabeça e morreste. 

- Ridículo! Ninguém morre assim! 

- Tu morreste... 

- Me recuso! 

- Olhe, isso não está em votação. 

- E quem é você? 

- A morte, claro. 

- Mas a capa, a foice... 

- Era muito gótico, não achavas? Além do mais era difícil velejar e segurar a foice ao mesmo tempo.. 

- Velejar?! 

Calei-me um instante. Com toda força que ainda tinha tentei lembrar do últimos acontecimentos. Pensando melhor não lembrava de ter chegado em casa. Não lembrava nem mesmo de ter saído do bar. Que beleza, sua bêbada! 

- Venha, beicinho, vamos dar uma caminhada pela praia e sent... 

- Tá biruta? A praia mais próxima fica a quilômetros daqui! 

- Um riso de bronze, cheio e alegre, encheu o ar. A morte ri!

- És muito invocada! Venha, precisas... 

- Invocada? Invocaaada? Você me aparece de não sei onde, na minha cama, dizendo que é a morte e tals... e eu sou Invocada? Se eu morri, cadê o caixão? Cadê as velas? Hein? Hein? E a luz? – estava começando a ficar histérica – Cadê a luz branca? Venha para a luz, Mary Ann, venha para a luz! Invocada é a....

Sua mão enorme voou até minha boca salvando a tempo minha reputação de dama educada. Ergueu-me e pôs-me diante do espelho. Podia ver o reflexo do seu sorriso atrás de mim.

Algumas imagens começaram a vir a tona, dor de cabeça, pessoas chorando. Olhei para eu mesma acenando-me lá do espelho e pude ver um enorme buraco afundado e escuro na lateral da cabeça. Ninguém sai por aí com um buraco daquele tamanho no coco, assim como uma moda nova, pois qualquer um estaria morto, ou em vias de. Foi o que pensei. Até mesmo eu. Jesus, era verdade! Estava realmente morta! Como me deixara abater de maneira tão ridícula! Afinal, havia maneiras muito mais dignas de deixar o mundo.

Tentei me acalmar. Se é que alguma análise minimamente lógica fosse possível, eu tinha que tentar uma. Havia morrido. Ponto. De maneira bem pouco honrosa, é verdade, mas havia morrido. No entanto, fora a ressaca, estava bem. Não sentia nas carnes a danação do fogo do inferno nem o bafo de satanás no meu cangote. Embora achasse que deveria ter ido diretinho para o inferno só para deixar de beber, sua besta! Poderia concluir então, com alguma segurança, que, se não estava no céu (e os anjinhos tocando harpa sobre nuvens de algodão?), ali também não era o inferno. O homem, digo, a morte interrompeu meus pensamentos como se tivesse acompanhado todo o raciocínio.

- Olhe, só tem um probleminha... 

E ele começou uma história longuíssima que vou tentar resumir aqui pois isso não é um romance russo. A morte começou a discorrer sobre minha vida pregressa, que afinal de contas, no frigir dos ovos, não havia sido má, e que até fizera boas coisas, etc e tal. Por isso era justo que gozasse da visão beatífica eterna conhecendo Deus em sua essência divina. O probleminha? Explicou. Acontece que o céu era um lugar muito bem organizado, sim senhora! Não era simplesmente ir chegando e entrando assim, como se fosse a casa da mãe Joana. Todos são cadastrados e devidamente crachados e encaminhados cada um ao seu setor. E havia o setor do mártires. E havia o setor dos acidentados. E havia o setor dos grandes arrependidos. E havia o setor das virgens. E era justamente neste setor que estava o problema.

Depois dos anos 60, sutiãs queimados e o advento da pílula sexual, toda aquela história de paz e amor, o que Ele achava ótimo na essência mas lamentável na substância... enfim. As virgens começaram a rarear no céu. Virgens maiores de 15 anos? Eram recebidas com honras de estadista, canhões, toda pompa e circunstância! A coisa foi ficando cada vez pior, chegou os anos 80, toda aquela história de fitness e culto ao corpo, e ainda por cima a Madonna... As virgens se tornaram tão escassas que Ele achara por bem fechar todos os setores de virgens maiores de 12 anos! Não havia lugar no céu para virgens! Um horror! Que tempos esses, não está dando mais para adiar o Armagedon só para ver se o ministro da economia acerta desta vez...

- E eu com isso? 

- Meu precioso beicinho, tu já fizeste 18 anos faz um tempinho e errr, bem... 

- Mas eu sou casada! Ca-sa-da! Pode olhar aí nos seus registros, fichas, sei lá... 

- Não, não há engano. Olhe – me mostrou uma caderneta de couro marrom, um tanto gasta pelas eras – Nome, endereço, profissão. És tu mesmo! 

Não houve jeito, a morte é implacável. E um tantinho teimosa também. Ou teimoso. Nem me deu ouvidos. Ou eu voltava e dava um jeito na annnn, bem... condição em uma hora ou nada de ir para céu. É isso. Morreria duas vezes. O que dava um trabalhão, e a morte já havia até reclamado com Ele mas sabe como é, são os desígnios Dele, fazer o que? Se me encontrasse na mesma ao término do prazo, não haveria jeito, teria que ir para o inferno, pois que lá se aceitava qualquer um mesmo.

* * *

As pálpebras pesadas não queriam obedecer. Levantei-as num esforço sobre humano. Um mar de cabeças a minha volta imediatamente começaram a rir, gritar e dizer coisas desconexas. O ar estava cheio de luzes coloridas. Me puseram de pé e aos poucos a consciência foi penetrando cérebro afora. Logo explicaram-me tudo: o sabão, a quina do balcão... Mas tudo havia terminado bem. Meu Deus! Quanto delírio! Do que é capaz a imaginação de uma bêbada. Esse era o último porre da minha vida, e dessa vez era sério! Casada e virgem, vê se pode! 

Enquanto jurava pela minha avó mortinha que nunca mais comeria nem bombom com licor e que trocaria o Zulú (o álcool, não o bonitão) por água e detergente, olhei para o balcão. Lá estava ele, um homem muito grande, pele curtida de sol, sorriso claro e maroto, braços enormes. Ele sorria. Senti um nó na boca do estômago. Será? Por via das dúvidas, arranquei a roupa e pulei em cima do primeiro homem que passou na minha frente. 

Hoje tem duas semanas que meu marido não fala comigo. Ele nunca acreditou em vida após a morte.

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