INCOMPLEXITUDE 
Míriam Salles

Todo dia eu acordo com a sensação de que ficou algo por fazer. Não é dormir, embora eu nunca durma o suficiente para acabar com o sono. Levanto, jogo soro nos olhos para descolar as lentes de contato, tomo meu remédio para tireóide. A doutora mandou tomar logo cedo, em jejum. Detesto essas ordens de médico. O que significa "em jejum"? De estômago vazio, claro, mas por quanto tempo? Se eu acordo, me lavo, me troco e me arrumo em dez minutos, será tempo suficiente para o tal "jejum" fazer efeito? Ou será que eu deveria ficar em jejum por mais uma hora, morrendo de fome e sonambulando pela casa? Sonambulando, sim, porque até tomar a primeira xícara de café eu não acordo direito, exceto em raras ocasiões (cada vez mais raras, aliás) desde que as crianças cresceram o suficiente para só precisar de mim de manhã para o transporte. Nas outras horas do dia, eles precisam de mim para quase tudo. Pedem opinião, dinheiro, ajuda para muitas coisas. Precisam de mim também para dividir acontecimentos e trocar idéias. Eu preciso deles para me sentir querida.

Vou pelo dia afora com a tal sensação de incompletude. Incomplexidade. Incomplexitude. Concordo com a Marina: deveriam ampliar nosso vocabulário com palavras que sintetizem sentimentos. Saudade é uma bela palavra, sintética e inexplicável. Nessas horas fico ainda mais feliz de ser brasileira. Sei um pouco de alemão, de inglês e de espanhol. Nas três línguas sinto falta de palavras sintéticas para sentimentos e ações. Em geral, é necessário achar duas ou mais palavras nestes idiomas para traduzir uma só nossa. Hoje precisei escrever uma carta em alemão. Tive que fazer uma frase enorme para dizer "não funciona".

Sento-me em frente ao micro para trabalhar. Paro para pensar a cada e-mail recebido. Cada um me traz à lembrança ou sinaliza um assunto pendente. Minhas amigas vivem reclamando que não leio tudo. Meu marido também. Para ele, eu respondo "você pensa enquanto toma banho, eu, enquanto leio". Ler, para mim, é mais do que simplesmente me apropriar dos conteúdos. Quando leio, eu viajo para muito longe. Envolvo-me nas tramas ou crio novas a partir de algumas frases. Outras recordam assuntos arquivados na memória não volátil. Foi assim que lembrei da minha máquina de costura Elna, lendo qualquer bobagem que continha o nome Lena. Foi ler e lembrar: preciso escrever para a Elna em Switzerland. Quando começo a desenhar então, é uma festa. As cores ganham estórias, as formas ganham nomes, as letras transformam-se em arte abstrata.

Enquanto trabalho, sigo pensando. Sei que tenho quase tudo que desejo e, o que não tenho, faz falta, mas ainda assim não é disso que sinto falta. Não é de uma coisa, nem é de uma atitude de alguém. O vazio que sinto é por dentro. Não falta comida, mesmo passando fome devido ao regime. Não falta álcool, embora eu tenha por vezes o receio de gostar demais de bebidas alcoólicas. Muito menos faltam carinho e amigos. Tenho carência sim, quem não tem? Mas sei que sou querida. Sinto que sou amada, e muito. Não falta trabalho, pelo contrário, trabalho sobra em abundância. Falta tempo para realizá-lo a contento. Mas também não é isso que me incomoda. Tampouco a falta de dinheiro. Sinto não poder comprar tudo que quero, mas isso não me abre um buraco por dentro. Quando muito causa angústia, em geral quando não posso dar algo aos meus filhos, ou quando tenho que comprar a ração mais vagabunda e barata para os meus bichos. Nessas horas fico brava com a vida e acabo perdendo a paciência com quem estiver por perto. Mas também não é de calma que sinto falta, tenho calma até demais.

A noite, quando deito, falta sono, o mesmo sono que sobrou durante o dia. Fecho as pálpebras esperando que assim ele chegue, mas nada acontece. É a hora em que penso mais e mais profundamente e também mais profundamente sinto que ficou algo por fazer. Nessas horas, quando me sinto sozinha mesmo estando enrolada no corpo do meu marido, é que às vezes vem uma palavra insistentemente cutucar minha tranqüilidade. Pergunto, então, se o que ando sentindo, se aquilo que faz tanta falta todos os dias pode ser, simplesmente, paixão.

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