A SEGUNDA MEIA-NOITE
Ana Terra

Na primeira meia-noite você chegou. Junto com as primeiras gotas de chuva. Entrou mansamente em meu quarto. Estava nu. Começou um estranho ritual. Passou a desnudar o que já estava nu. Extraiu de sua pele estranhas substâncias que pareciam fungos. Enquanto trabalhava em seu corpo, me olhava profundamente. Ficou limpo, translúcido. Com um sorriso maroto, deitou-se ao meu lado. Eu nunca tinha abraçado sentidos e sensações. Vi que meu corpo também havia passado pelo mesmo ritual, sem que eu percebesse. Experiência etérea. Olhei para um canto do quarto e vi uma pequena fatia de um material transparente, brilhante, incolor, cheio de pontas e arestas. Uma fatia de cristal, talvez. 

Fusão perfeita entre sentidos e sensações. Como minúsculas ventosas nossos poros se beijaram. Nossas línguas, finas lâminas que, vagarosamente, caminhavam pelo corpo. Cortando, arranhando, roçando. Todas as nossas bocas foram beijadas. Sugadas. Exploradas. Conversa muda de línguas livres. 

Nossos sentidos e sensações aumentaram, assim como o ritmo da chuva. 

Olhei para o canto e vi que a fatia translúcida ia se colorindo, na medida que a suavidade e ternura envolviam o ambiente. Nascia um quadro surrealista, sem pincéis. 

Conversamos muito enquanto nos amávamos. Calados. Os sentidos e sensações falavam por nós. 

O calor invade. Fogo. Labaredas. Luz tão forte que mantivemos os olhos fechados. A fogueira nos acolheu. Derreteu nossos corpos. E a fusão, completa. 

Na segunda meia-noite, o medo. Minha proteção, o corpo, havia desaparecido. Num gesto brusco, quebrei a parte do mosaico que ainda não estava pintado. 

No mesmo instante, você, que ainda estava nu, desvencilhou-se do meu corpo. Delicadamente colocou a pintura numa velha mochila. Fez cacos da parte ainda incolor e os guardou. Cobriu seu corpo, que ainda estava em sentidos e sensações, com um manto azul. A chuva parou. Seu olhar para mim foi demorado e indagador. 

Saiu sem se despedir. Corri até a janela e vi um deserto, com seus rastros. Os cacos translúcidos foram caindo pelo caminho e você foi engolido pela escuridão.

Olhei para o lado onde nasce o sol. Ele estava chegando, sonolento. Despejou raios tímidos na areia do deserto. A luz fraca deu um delicado colorido no seu rastro, mas segundos depois, o sol aponta com toda sua plenitude. 

E tudo desapareceu. Você com seu manto azul, a delicadeza, a ternura, a magia, o fogo, os sentidos e as sensações. 

Vesti meu corpo. Hoje amanheci na janela. Ainda consegui ver um pouco de seu rastro com os primeiros raios de sol. Mas estava a pouca distância. Não consegui saber que rumo tomou. 

Pensei em amanhecer na janela amanhã. Tentar, mais uma vez, saber seu rumo. Mas sei que será inútil. Os cacos, que eram delicados demais, se quebraram. E nunca mais será perfeito.

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