A DOR DA GENTE NÃO SAI NO JORNAL
Edison Veiga Junior

! À querida Márcia Neme, por ter provocado o texto !

A chuva que chovia torrencialmente eram as lágrimas dos anjos que choravam a morte de Deus. Sim, porque assim falou Zaratustra: Deus está morto. Mas eu não sei quem o matei. 

Via a chuva chover encastelado em minha casa. Não trajava sóbrio luto, nem para espantar a iconoclastia ou afugentar as suspeitas que naturalmente me caíam. Sempre detestei a anacronia desses cerimoniais, ritos e/ou resquícios de costumes tribais. 

Recostado à janela, acompanhava as lágrimas angelicais que escorriam pelo vidro. Minha respiração embaçava o vidro, tornando quase opaco o que queríamos transparente. Areia, vidro. Vidro, areia. Areia e o tempo que passou na janela e só Carolina não viu. Não sou apenas eu que amamos Carolina, porque Carolina é uma menina que contamina, nos ensina a amar. (Vale não esquecer que hoje em dia há uma carolina em cada esquina — as mais doces são vendidas na padaria, quitute charmoso).

Areia, vidro. Vidro, areia. Sangue escorrendo na praia, manchando o mar verde. Ver de novo o mar, manchado. Mar vermelho. Moisés atravessando o mar e uma multidão brotando ao seu lado, todos sem nome, gentes azuis, amarelas, verdes, e algumas também um pouco carolinas. 

Fui tomar um banho, quente. Era a única maneira de contrabalançar a chuva que chorava lá fora. Um peso, duas medidas. Cátion e ânion: ionizado eu ficava mais desinfeliz como se a existência fosse suportável, ou a insustentável leveza do ser, de ser, assim, desvencilhável.

Na cabeça passavam emoções recortadas de um filme chamado vida. "Tutto buona gente", dizia minha vó, una bella vecchia, e sorria sua prótese dentária. Contudo, no dia da morte de Deus, me lembrava de outras pessoas:

— Um dia, minha Filha, a gente vai ser feliz!

— A gente não é, Mãe?

— Um pouco. Mas um dia a gente vai poder comer à vontade, de tudo, sem precisar de dinheiro. Já pensou, um supermercado todinho só pra gente? Nunca mais a gente vai passar fome, de tanta comida...

Pausa. A Filha parecia reflexiva diante do que ouvira. Alguns segundos depois, abriu uma interjeição pueril:

— Mãe, o que é comida?

Não obteve resposta. A Mãe, contrita, continuava cozinhando água suja com jornal, a sopa que lhes enriqueceria o organismo para suportarem mais um dia nesta lenta agonia que é viver. 

Penteando os cabelos eu olhava-me ao espelho, achando-me ridículo. Eu, um ser humano. Dotado de massa encefálica altamente desenvolvida e dedos polegares opositores. Como Carolina, Moisés e a Mãe e a Filha que comem jornal. Como os jornalistas e os jornaleiros. 

No espelho pude ver um cartaz amarelo dentro do meu cérebro, com a inscrição, em letras garrafais: JORNAL É QUE NEM SALSICHA: QUANDO VOCÊ SABE COMO É FEITO VOCÊ PERDE A VONTADE DE COMER. Estava convicto de que as pessoas não deveriam comer jornais. 

Todos os dias são produzidos mais de dois milhões e meio de exemplares de jornal, no Brasil, somadas as tiragens de todos eles. Mais de mil toneladas de papel para saciar a fome de notícia, praia e sangue de todos nós, humanos dotados de massa encefálica altamente desenvolvida e dedos polegares opositores.

Os jornais são feitos por jornalistas e vendidos por jornaleiros. Jornalistas e jornaleiros comem com o dinheiro que ganham através dos jornais.

Os jornais são lidos por mim, Carolina e Moisés. Gostamos de lê-los tomando café da manhã e comendo pão com margarina vegetal hidrogenada, a fim de começarmos o dia com a falsa sensação de sermos cidadãos bem informados a respeito da cotação do dólar rumo ao penta, da bolsa que caiu e era vidro e se quebrou, do presidente dos USA que quer bombardear o mundo inteiro para assim, exterminando os famintos, resolver o problema da fome.

Os jornais não são lidos por Mãe e Filha, óbvio, que são analfabetas. Elas ficam torcendo para que chegue logo o dia de amanhã, as notícias fiquem velhas, e o calhamaço de papel seja jogado no lixo, onde elas vão buscar seu pão-nosso-de-cada-dia-nos-dai-hoje. Na sopa de jornal com água suja, qualquer página serve, embora a Filha prefira os desenhos coloridos do Estadinho e a Mãe goste mesmo é das fotos dos artistas de cinema do Caderno2 ou da Ilustrada. O estômago não tem olhos e, portanto, não faz questão de digerir a coluna do Jabor ou do Simão e nem mesmo é capaz de discernir as diferenças entre a fotografia do Serra, imberbe, e do Lula, hirsuto. O estômago, aliás, também não tem cérebro.

Todos os dias são assassinadas milhares de árvores para a extração da celulose para a fabricação do papel para a impressão do jornal para saciar a fome de notícia minha, da Carolina e do Moisés e a fome-fome de Mãe e Filha. Todos os envolvidos no processo somos seres humanos, dotados de massa encefálica altamente desenvolvida e dedos polegares opositores. Com o assassinato das árvores estamos contribuindo para o nosso próprio suicídio, lento e gradual. 

Enquanto concatenava tão complexo raciocínio, refletindo enquanto minha imagem se refletia ao espelho, fiquei orgulhoso por ser tão brilhante na capacidade de encadear idéias lógicas. Em êxtase, conclui a importância de ser dotado de massa encefálica altamente desenvolvida e dedos polegares opositores.

A chuva parou de chover.

Pensando bem, matar Deus nem é tão grave assim. 


#20 de outubro de 2002#

: Livremente inspirado e pirado no curta: "ILHA DAS FLORES" (curta-o!)

: o ZARATUSTRA é o filho do Nietzsche que não é DEUS, mas também morreu.

: a CAROLINA é da canção do Chico que é quase DEUS, mas já está ficando velho.

: o CARTAZ AMARELO é coisa da cabeça do Drummond cem anos de PEDRA e nós tropeçando no CAMINHO.

: a REFERÊNCIA ao best-seller de Kundera é quase subliminar; não serão pagos DIREITOS AUTORAIS.

: Faz muito calor em Bauru. colar a idéia: "PISCINA NO CÂMPUS" (paratodos)

! Escrito, do começo ao fim, ao som dos Mutantes !
(um beijo, Rita Lee!) 

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