NO MEIO DA NOITE
Shirley Kühne

Foi numa noite de março tão escura quanto é a noite dos que dormem eternos. Uma quase tranqüilidade perseguia o rastro glacial da lua espessa que enevoava o marinho do céu. Dormíamos em simetria; encaixados. O velcro que unia nossos corpos adquiria tanta intensidade que parecíamos ter o mesmo pulmão a impulsionar o ar de um para outro, numa sincronia siamesa, onde todos os nossos pêlos vibravam idênticos à mais ínfima insinuação de movimento. De noite éramos uno. 

Acordei em sobressalto com a sensação de que pertencia ainda a alguma camada de sonho - não sabia ao certo -, mas um peso atravessava meu peito. Uma agonia úmida e vertiginosa me fez procurá-lo com mãos trêmulas, porém não sentia mais o seu calor ao meu lado. Sentia sim, meu pé, enroscado no lençol, na tentativa de saltar da cama, e no frio do assoalho vasculhar a casa procurando pelo odor de cigarro. Era raro, mas acontecia que saísse no meio da noite para fumar. Fumava muito, é verdade. Depois do almoço, do cochilo, do jornal das oito, até no meio do banho. Mas à noite, só quando algo andava errado entre nós.

Crescia meu desconforto com o cheiro acre do cigarro e pedia que não fumasse no quarto. E aos poucos foi fumando mais distante. Às vezes no escritório, outras na cozinha, quando ainda havia algum café na garrafa térmica para acompanhar. 

Na semana passada o encontrei na varanda - no escuro, solitário; via seu vulto sustentando o farol da brasa que iluminava o clarão leonino de seus olhos castanhos. Naquela noite um amigo havia chegado de Recife, de passagem; queria me ver e propôs dormir em casa antes de embarcar pela manhã para Brasília. Sua reação foi imediata:
 
- Porque esse Felipe tem que ficar aqui, ele que vá para um hotel?! 

- Mas é só por esta noite! Sempre fiquei em sua casa quando precisei....

- Não insiste!

- Vamos ao menos levá-lo para um hotel então.....

- Chega! você não entende? não quero sequer vê-lo! 

Depois da discussão acabei inventando uma desculpa e negando a acolhida. Aqueles olhos chamuscavam perigosos quando eu contrariava - e isso era freqüente -, suas decisões. Chamei-o para dormir, não atendeu; acendeu outro cigarro. Aumentava o nível de tensão, para depois enfiar-se indiferente na cama quando eu já adormecera. Gostava de decidir suas horas para tudo. Mas em questão de segundos o imã de sua boca ignorava as palavras ditas, suas mãos colavam-se no meu corpo e as nossas pernas obedeciam ao mesmo balé copulatório de sempre. Ficamos trancados em casa até a hora do almoço, quando certamente meu amigo já se encontrava em pleno vôo.

Como em tantas outras manhãs, a pele morena de sua mão descansava encaixada no meu ventre e novamente me acordava. Sua necessidade travestida de bem-querer era imperiosa. Não importava que eu perdesse a hora. E eu perdia muitas vezes. Gostava, é claro, de sua desfaçatez sacana, mas não dos atrasos, e isso era sempre motivo para que saísse irritada, sem tomar café, atrapalhada no trânsito. Também ele não gostava de nenhuma das minhas amigas ou de ouvir falar das reuniões do meu trabalho. E sem ter noção exata, eu vinha desafiando o seu território: chegando tarde, indo ao cinema vez ou outra, só ou acompanhada.

Mas naquela noite não. Não o encontrava em nenhum lugar costumeiro. A brasa recém-apagada no cinzeiro da cozinha denunciava sua presença recente. No banheiro, sala, escritório, varanda. Nada dele. No quintal estava Bira, o labrador preto, que parecia me abanar o rabo sonolento, mas que estranhamente não se aproximou como de costume. Ele não teria saído, senão eu ouviria os choramingos do cachorro. Sempre enfiava o focinho por entre o vão do piso e do portão de chapa de ferro uivando desesperado para que não saíssemos; para que não o deixássemos solitário mais um dia claro; um interminável dia canino. Mas saíamos sempre. 

Eu para o trabalho, ele, mais tarde, para ensaios, aulas ou algum compromisso que nunca explicava exatamente o que era. Eu entrava às nove horas no escritório da consultoria de economia de um ex-professor da faculdade. Tinha jeito e competência para a coisa. Mas o entusiasmo inicial foi se perdendo entre os números inexatos daquelas planilhas e projeções cotidianas, e eu não atinava a razão para isso. Ele odiava o tal professor e as minhas competências todas. Ah, sim, contava dele, do sumiço. Mas é que necessário rememorar um pouco para encontrar a conexão, sabe. Ele? 

Ele era de teatro. De bonecos. Confeccionava e manipulava mamulengos. Dizia que era fascinante brincar de dar vida às personagens. Ou tirá-la quando bem quisesse. Também escrevia cenas, esquetes. Tinha participado de vários festivais de teatro, inclusive na Itália. Foi para lá como cenógrafo e acabou entrando no elenco por influência de um diretor de Trento que o conhecera em São Paulo, cinco anos antes de eu aparecer na sua história. Surgiu no palco fulgurante, como um fauno encantado, sedutor e lúbrico - fui vendo as fotos da temporada guardadas com carinho numa caixa de sapatos -, uma pequena pausa entre os caixotes da mudança que esvaziávamos no sobrado alugado na Bela Vista. Após algumas brigas com o tal diretor de teatro, resolveu voltar ao Brasil. 

Ele negava, mas sempre achei que tinham tido um caso.... Desfiava uma dúzia de nomes femininos que tinham sido mais que simples amiguinhas. E por incrível que pareça, eu era a relação mais estável que tivera. Em quase dois anos de acertos e desacertos sua verve de artista ocultava uma insegurança e possessividade que intercalavam peças infantis, discussões sobre meus amigos, noites absolutamente inesquecíveis, pontas em comerciais de TV, separações de alguns meses, oficinas de teatro na periferia, ameaças. Vivíamos assim. Ele, eu e seus bonecos.

O conheci vendendo um deles numa feira de artes da cidade. Mostrou-me como manipulá-los, enquanto falávamos de teatro, cinema, música e literatura. Como eu, era ardoroso fã da literatura latino-americana, e lembramos do argentino Borges.

Jorge Luís Borges com seus labirintos, espelhos e criaturas estranhas nos tornava ainda mais cúmplices. Conversamos sobre um conto do escritor que ambos tínhamos lido chamado "O morto": Um jagunço do pampa, após salvar a vida de um famoso bandoleiro numa briga entre gangues, é convidado a entrar para o grupo. Começa a participar das ações e a ganhar importância e status no bando. E a desejar também o lugar do chefe. Os demais integrantes consentem com a audácia do novato. Ajudam-no a roubar uma carga de contrabando. Mais ainda: ele conquista a bela amante do chefe! Ao final, o jagunço, quase acreditando ser o novo líder, é executado pelo grupo. 

Explico: todos do bando haviam permitido sua ascensão, pois na verdade tudo o que ele vinha fazendo eram atos de um sentenciado, um condenado. Estava morto por antecipação e nessa condição tudo lhe foi permitido. Alguém que estava morto e não sabia. 

Como no conto de Borges, também não me dei conta do que estava por acontecer. Só depois que o vi voltando do banheiro da lavanderia (único lugar que eu não procurara), mãos e rosto molhados buscando o pano de prato pendurado no fogão para enxugar-se e secar a faca deixada em cima da mesa, é que percebi o elo entre ficção e realidade. E onde eu estava de fato. 

Acendeu um cigarro do maço deixado em cima da mesa, atravessou o corredor, entrando em nosso quarto. Afastou o lençol enroscado do meu pé, deitando-se calmamente na cama. O cigarro aceso e eu ali, muda - corpo inerte e ensangüentado -, já não podia mais dizer nada. Da falta dos amigos, dos filmes que saíram de cartaz, dos atrasos no trabalho e do cheiro azedo do cinzeiro. 

Também não percebi quando exatamente tinha começado o meu fim. Talvez naquela tarde, na feira de artesanato, brincando com e como um de seus bonecos....

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