DA LEI DO SILÊNCIO
Ana Luísa Peluso

(o silêncio diz ao tímpano, 
nada. 
e o tímpano nada
no silêncio.)

Olhando lá fora, o silêncio parecia ainda maior. O céu tinha cor de fim de mundo e lhe pareceu por alguns segundos que tudo poderia ruir, explodir, ou mesmo inexistir. Tanto fazia.

Era tão estranha a sensação que aquela noite cinza lhe causava com suas nuvens amareladas, que lembrar que se passava muito do horário de algo acontecer já não importava mais. Sabia-se real e isso doía. Ainda que sentisse medo, engoliu três comprimidos, todos a seco, um de cada vez.

Sentia uma espécie de desconfiança do silêncio. Afinal, ele poderia falar a qualquer momento.

O silencio certamente teria muito a dizer, por ouvir tudo. 

Do humano ao não humano, da culpas infundadas, das dores e seus algozes, de muito além do sol, do tom mediano entre o escuro e a luz, dele mesmo e sua quebra e de para onde iam todos os sons do mundo, quando já não se podia ouvi-los.

Isso dava arrepios. O silêncio sabia demais.

Batucava os dedos na cama, inquieta, buscando inspiração para compor sons, mas tudo o que conseguia era ouvir o som do próprio coração que batia acelerado dentro do peito. Nada a movia para fora do silêncio. Nada a movia para lado algum, a não ser o pensamento.

(Eu não vou ficar quieta. Não preciso, não quero e ninguém vai me impedir de falar, falar, falar e falar, até deixar todos vocês cheios da minha voz, lotados, recheados, estufados e possessos! 
Todos terão um pouco da minha voz dentro de si. Um pouco de mim para se fartarem até as tampas que hão de retumbar minhas palavras até o dia em que apenas o silêncio total guardará todos os sons do mundo.)

Era excitante imaginar que a loucura pudesse habitar o silêncio pelas presenças todas das vozes que contavam suas vidas. Pelas catástrofes que explodiam seus sinais e suas conseqüências; o humano pedindo socorro, o não humano se quebrando e informando imediatamente que não era preciso mais socorrer nada; a verdadeira quebra do sigilo da vida. O baile dos sons do mundo ali ao alcance de todos.

O silêncio continha o mundo e o mundo a continha. Ela não continha nada, a não ser questões sobre o mundo, que o silêncio poderia responder se quisesse. 

Mas o silêncio lhe parecia com algo enorme, sem fim, firme e forte o suficiente para agüentar tudo calado. E isso não significava que ele estava certo. Ela o condenava. Ela condenava o silêncio na mesma proporção que o temia. Mas não disse nada.

(Realmente é muito interessante poder gritar, falar, dizer tudo o que tenho a dizer e nem sempre posso. Aproveito o momento, a deixa, o espaço e falo, falo, falo, repetindo as palavras várias vezes. Tudo isso pelo tempo que permaneci calada, quando apenas observava suas vozes ousadas e suas trocas de olhares. Os mesmos de todos os humanos, os mesmos de ontem e de amanhã; de quando o nada existiu e desistiu. De quando vocês todos surgiram e eu me calei. 
Nós éramos felizes até vocês surgirem, sabiam?)

Naquele momento, ficar quieta parecia quase insólito, mas não conseguia emitir som algum. Apenas ia de um lado para outro. E nem isso sugeria ruídos, por estar descalça sobre o carpete. Como podia ser infernal o silêncio. E demorado também. Não adiantava pensar que poderia simplesmente ligar a televisão ou mesmo colocar algum cd para tocar que preenchesse o vácuo de uma hora para outra. Primeiro, por aguardar algum som natural, como o barulho das chaves na fechadura ou a comunicação de algum vizinho. É, algum vizinho poderia precisar de alguma coisa e de repente lhe pedir. Mas sabia que nada disso aconteceria. A não ser por algum acaso muito distante de sua realidade. E também por não ter o hábito de falar com os vizinhos.

Segundo, por saber que mais nada natural poderia acontecer num mesmo dia, ainda que questionasse a naturalidade dos fatos.

(Estão vendo como posso falar? Posso sim. 
Posso dizer do silêncio daqueles que temem e não compreendem nada; olham pelos buracos das fechaduras atrás de alguma coisa, enquanto pensam viver. Vou falar tudo o que me enobrece e agiganta, antes mesmo que alguém possa pensar em não ouvir. Imagino que não haverá espaço de tempo suficiente para que eu seja interrompida. E, pensando bem, não agüento mesmo olhar para a cara de vocês todos. E tudo o que eu gostaria era poder sumir com seus semblantes e reações ensaiadas, assim como quem apaga um desenho repetido, um borrão qualquer. 
Ou como quem apaga um som. Como um estampido. 
Pá! Um semblante sumiu! Pá, pá! Outro! Pá, pá, pá!
Faltaram apenas vocês dois. E não me olhem assim. Eu ainda não terminei de falar.)

Olhou as cutículas. Sangravam. Tinha a mania de puxar as peles em volta das unhas com os dentes quando estava só. Chupou o pouco sangue que saiu delas e sentou-se no chão, como quem pensa em rezar. Mas não rezou. Sabia que não adiantaria de nada.
 
Nunca adiantou.

(Um estampido pode apagar um som. 
Pode apagar seu próprio som, pela rapidez que acontece. Pode apagar outros sons, pela lentidão da crença e ainda assim ser um estampido. 
Pá! Ouviu? É um estampido. 
E você, aí, ainda é necessário dizer que, se me calei por todo esse tempo foi apenas por uma questão de princípios e que minha vontade era gritar em seus ouvidos o tempo todo, todos os dias, até convencê-los da dor que me fazem sentir nesse momento, como quando abrem suas bocas imundas.)

O silêncio não cessaria sua existência tão cedo. Não abriria a boca e nem contaria nada.

Uma enorme bolsa muda ameaçava sugar sua existência para dentro de si. Recostou-se na cama. A bolsa era enorme e parecia ter vida própria, pois ela simplesmente não conseguia reagir à sua força. 

A campainha não tocou, os vizinhos não chamaram por ela, mas ainda podia se lembrar daqueles rostos conhecidos, todos quietos observando seu silêncio também profícuo, enquanto contavam da morte dele, pela manhã.

- Por quê?

Todos calados.

Eram culpados. Sempre soube que aquela família o mataria, um dia. Estava na cara, apesar de nunca terem dito nada...

O estado de sonolência já se confundia com a vida, mas ainda deu tempo de erguer uma das mãos e em mais um "pá!" imaginário atirar no último rosto que sobrava em sua lembrança. 

Com sorte poderia ser do filho da puta que contara a ele sobre seus segredos todos, cheios de mistérios que ele tentava sondar e ela respondia com o silêncio.

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