A MULHER E O CLARINETE
Ana Terra

Lá no alto, muito alto, acima das montanhas e próximo às nuvens, em pé sobre a pedra dura, estava a mulher. Uma fina neblina a envolvia. Vi apenas seu vulto e me sentei poucos metros atrás. O silêncio era profundo. Ao lado da mulher, uma pequena maleta de couro preta, esquecida no chão. Senti que aquele momento era só dela e quieta fiquei. Percebendo minha presença, ela me olhou intensamente. Seus olhos pareciam tristes. Procuravam algo no mar de montanhas à sua frente. Gostei do olhar da mulher. Um elo invisível entre mim e ela se formou. 

O dia estava terminando com toda a beleza. O Sol sorria em sua morte lenta, distribuindo cores. 

A mulher se abaixou, abriu a maleta e pegou um clarinete. Olhou para o instrumento como se o visse pela primeira vez. Delicadamente, com seus dedos o acariciou. 

A neblina, aos poucos, foi sendo empurrada pelo vento. Para mim, a mulher não era mais um vulto e sim uma alma à procura de algo. Algo que ela deveria ter esquecido naquelas ondas imóveis.

Meio desajeitada, soprou o instrumento. Ouvi um som estranho. Não consegui decifrar a nota. Ela continuou jogando seu ar no instrumento. Ora com raiva, ora com ternura. 

Aos poucos, sua intimidade com o clarinete foi se materializando. Das notas aleatórias, passou a tocar uma tímida música. 

A mulher fechou os olhos e com todas as forças que tinha, soltou seu coração no clarinete. O silêncio foi quebrado e a magia chegou. 

Música. Lindas notas musicais saiam do peito da mulher. O Sol esperou aquele momento para iniciar sua pintura diária. O vento levou a música até as montanhas. 

Suas ondas imóveis criaram vida e acompanharam o ritmo da música, com movimentos lentos. 

A noite veio de mansinho. A Estrela Dalva se adiantou naquele entardecer. A mulher nada via. Somente tocava. Renascia a cada instante. As montanhas lhe devolveram o que ela havia perdido. 

Finalmente, a noite chegou. Com cuidado, me aproximei da mulher e entrei na sua alma através de seu olhar. Ela sorriu e apertou minhas mãos. Eu e ela: duas espécies da mesma raça que se reencontraram acima das montanhas, das nuvens, envoltas pelo céu pontilhado de estrelas. 

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