OBRIGADA, MARGOT!
João Peçanha

Aceito sim, Margot, e sem gelo, por favor. As crianças esparramadas, tomando banho de sol no quintal, e a tarde mais voraz do mundo escorrendo por entre meus dedos, pelo vinco indecente dos poros, pelo suor pegajoso na pele. Não tinha me dado conta de que estava ficando velha, Margot, afinal de contas, 34 anos não são 17, certo? Não, sem soda. As crianças ficaram a tarde inteira tomando sol, naquela modorra de quem ainda tem muito tempo pela frente, naquela despreocupação de quem não está nada nada se preocupando com as coisas que porventura ocorram fora dos limites do quintal. E eu chorava, Margot, chorava feito uma louca desvairada, me trancava no banheiro de azulejos azuis e chorava feito doida. Aquilo não podia ter acontecido comigo. Podia ter acontecido com qualquer pessoa - até com aquelas personagens neuróticas que aparecem nos contos do Rubem Fonseca - menos comigo, Margot. Eu não suporto isso, é uma coisa mais forte que a própria vontade de estar viva, de andar de bicicleta, de fazer filhos ou criá-los. Aquela tarde foi arrasadora, tremendamente opressora. Eu sabendo e tentando dissimular, Margot, e a vida me escorrendo mais cruel que esta dose muquirana de uísque que você me serviu. Não, não precisa não, foi só brincadeira, quando eu quiser mais eu pego. Lá pelas seis da tarde, já sem sol, a avó veio buscá-los. Eles iriam viajar com ela, passariam parte das férias na casa dos avós em Itaipava. Aí então, quando eles saíram, eu me senti totalmente livre para fazer o que havia tido vontade de fazer o dia todo. Chorei na frente da televisão, com o Tarcísio Meira me vendo e tudo, e fui tirando a roupa e me lambuzando com as lágrimas que corriam. É... Talvez essa tenha sido uma forma de expressar no meu corpo o que sentia na alma.

Me serve mais, Margot...

De vez em quando eu fico me lembrando de nós dois, eu e o Lucci, Margot, e chego à conclusão de que nunca fomos tão felizes quanto na época do Palheta, lembra? Nós duas saíamos do cinema, passando Love Story e outras lacrimejâncias e ficávamos encostadas na frente do Palheta da Saenz Peña, gastando calçada de tanto perambular. Depois, eu ficava com o Lucci (porque, você se lembra?, ele ficava até umas nove da noite no curso técnico de contabilidade, e de lá se despencava para o Palheta para me ver, lembra Margot?) até depois das onze. Você ainda não estava com ninguém, só depois que veio o barão, não é? Ah, Margot, nunca fomos tão inconseqüentemente felizes...

Mas, voltando ao assunto, o Tarcísio Meira foi embora e me deixou sozinha com o Tom Seleck, na pele do Magnum do seriado. Tesão. Me masturbei feito louca, Margot. Não, não estou ficando louca não. Eu só senti vontade de me masturbar olhando o Tom Seleck, dá licença? Pena é que a qualidade desses enlatados, nos quais eu incluo o Magnum, compete de perto com as tuas redações de 4ª série, Margot. Mas valeu, o Tom é bem parecido com o Lucci. Vê bem: o bigodão meio cafoninha, mas tremendamente atraente, aquele riso canastrão, o jeito e os trejeitos e os cacoetes meio cafajestes... Ih!, menina, eu hoje estou que nem aquela piada: me serve mais que meu copo tá furado, ih, ih, ih... Não, Margot, não estou me embriagando não, mas que coisa de ficar vigiando, estabelecendo limites, que saco, Margot! Bom, eu só sei que nunca tinha gozado tão gostoso numa masturbação como naquele dia. Quando o Magnum saiu a toda, todo garboso pelas estradas do Havaí com aquele Ferrarizinho vermelho, eu já estava toda escarrapachada no chão da sala, suando em bicas, porque, se você não sabe, eu demoro muito a gozar no ato solitário, e resolvi desligar a TV.

Botei Alberta Hunter no som e fui na portinha de cima do armário pegar as fotos do casamento, das crianças, do parto do Diogo, da Laurinha, dos gêmeos. Por quê, Margot, a gente faz e cria tanto os filhos para, no final das contas, eles largarem a gente, a gente ser trocada por uma outra qualquer? Tá bom, eu exagerei, é, posso estar encarnando um pouquinho do Nelson Rodrigues. Mas o que não foi o meu casamento senão uma peça do Nelson, com aquelas pitadas de neurose familiar, hipocrisias, moralismos angustiantes e tudo o mais a quem se tem direito? Margot, o Lucci não tinha o direito de fazer o que fez comigo, Margot. Foi traição. Não, ele não me traiu com outra mulher não, mas foi como se tivesse sido assim. Na noite anterior à que ele foi embora, nós fizemos amor, mas um amor tão louco, tão desvairado, tão excitantemente agressivo, entende?, que eu pensei... Bem, que eu pensei que nós tivéssemos voltado a ser o que éramos antes desse vendaval que nos varreu a todos, que passaríamos uma borracha na falta de tesão, de abraço, de ter uma pessoa amiga deitada no lado oposto da cama; uma borracha nos palavrões, nas brigas, no caso com a Cecília, em tudo enfim. Mas nada: o filho da puta (enche outro?) saiu no dia seguinte depois do almoço e não levou roupa.

Nem uma muda, Margot.

Depois de comer a panqueca de banana que eu fiz.

Nem uma muda... Nem uma fotografia, nada. Me dá mais uma? Obrigada, Margot! Não, não, eu sei beber sim, pode ficar descansada que você não vai precisar levar nenhuma bêbada em casa. Aí, que eu não conseguia dormir naquela noite. Virava de um lado a outro da cama, sentia falta daquela presença quente, daquele outro corpo, Margot. E pensava no Magnum. E pensava no Lucci. Um se transubstanciava no outro, mesclavam-se na minha cabeça de vodca nacional. Só me vinha à cabeça a noite anterior, eu trepando com o Lucci, eu trepando com o Tom, eu trepando com o carrossel desvairado de homens gostosos que a vodca fabricavam para mim. Quero sim, e com soda. E eu não conseguindo dormir nem pelo caralho... Desculpe. Aí, Margot, fui no armarinho do banheiro, onde o Lucci guardava aquela bateria de vitaminas, e tomei 2 Valium para ver se conseguia descansar um pouco e evaporar a vodca. Finalmente, lá pelas tantas, conseguir pregar o olho. Aí, passaram-se semanas, e eu naquela angústia, naquela espera de, a qualquer momento, o Lucci entrar no quarto e dizer que tudo bem, baby, eu volto pra você. Já sei que fui piegas, mas é assim mesmo que eu me senti. E os dias se escorriam, e eu sozinha naquela casa, as crianças tinham saído de férias para a casa dos avós, em Itaipava (já te disse isso, devo estar de pileque), a empregada dispensada, de férias na terra dela (eu acho que é cearense), e eu solta naquela prisão, tonta naquele pesadelo, perdida. Até que um dia de manhãzinha, o Lucci apareceu. Eu estava na cozinha, cortando cebolas. Ao contrário do que eu imaginava na minha cabeça maluca, ele subiu direto para o nosso quarto, pegou as coisas dele, amarfanhou tudo numa mala velha e toda quadradona que foi do avô dele.

Desceu, foi na cozinha onde eu estava, pegou um copo de mate e urinou no banheiro da empregada, sem dar descarga, como sempre foi de seu estilo. 

E fez a sacanagem de me dar um beijo na boca.

Ah!, Margot, pena que a faca suja de cebola estava por perto!...

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