BIFE DE FÍGADO
Luciana Priosta

Primeira vez na casa da menina. Nervoso? De forma alguma. Desconfortável talvez. Essa mania de agradar (claro que vou jantar na sua casa mô!). Era só dizer que ainda não tinha estrutura psicológica para tanto e pronto, não precisava estar ali. Mas não. Macho que era não podia dar bola para estas frescuras psicológicas. Macho que é macho só se interessa por psicologia se ela for loura, gostosa e acessível. Sua mania de agradar a todo custo ainda ia lhe colocar em algum apuro. Sua voz é um poema, suas mãos pássaros esvoaçantes sublinhando cada doce frase sua, seus lábios... seus lábios... pro caralho os lábios desde que a menina descesse a calcinha.

Porém antes de seguirmos com a tragicomédia doméstica é preciso que se fale sobre suas preferências gastronômicas. Embora em toda a sua vida sempre tivesse achado que gastronomia fosse alguma especialidade médica. Não me demoro. É bem simples: topa tudo. Leitão? Oba! Coração de boi? Delícia! Buchada de bode? Manda! Só não gosta muito de restaurante francês. Muito prato para pouca comida. Para impressionar uma menina, certa vez, economizou o mês todo para levá-la no tal restaurante metido a besta. Traçou tudo, é verdade, inclusive a menina, mas jurou que da próxima vez iria até o restaurante do Zé para encher a pança de costelão. Só havia uma única coisa em todo o mundo que não podia nem ouvir o nome. Era só botar os olhos e tudo começava a rodar, o estômago contorcendo-se agonizante. Isso mesmo, o título. Bife de fígado! Trauma de anemias infantis? Quem sabe? Não podia nem ver foto que passava mal. E o que acham que havia para jantar na casa de sua amada naquele fatídico dia? Hein? Hein? Exatamente. Bife de fígado. Agora me digam: por que aquela senhora tão caridosa, missa todo o domingo sim senhor, esperava suas visitas para jantar com bife de fígado? E ainda por cima mal passado! Não há o que dizer. Por que toda vez que você encontra com a gostosa do 101 está rodeado de sobrinhos? Não tem resposta. Por que bife de fígado para o jantar? Por que? Whay? Patchemú? Não tem resposta.

Entre refresco de caju e conversa polida a noite até que não parecia tão perdida. A senhora foi até piedosa e evitara as perguntas de praxe. O que você faz meu filho? Quanto ganha? Quais são suas intenções? Um alívio, pois se tivesse que falar sobre suas intenções a boa senhora chamaria a polícia. Mas já havia adivinhado o cheiro que vinha da cozinha. Eles estavam lá, gosmentos, sangrentos, bilientos, o inferno! Seu rosto começava a ficar levemente azulado. Prenúncio de catástrofe eminente.

- Está se sentindo bem meu filho?

- Nada, cansaço...

- Ora então vamos jantar, isso é fraqueza!

Entrou pela sala de jantar a simpática senhora com a travessa de bifes que rapidamente tomaram conta da mesa, da sala, da casa! Começou a delirar. Os bifes de fígado dançavam ao seu redor, rindo e cantando o Aserehe! De azul, seu rosto começou a esverdear-se e logo todo o arco-íris tomou conta de suas feições. Teria dado o serviço ali mesmo se não fosse sua mania de agradar... Respirou fundo e enxotou com a mão os bifes dançarinos. Era macho ou não era, porra? Começava a duvidar. Teve até a impressão de que o bife mugia alegremente enquanto zombava dele (viadinho! viadinho!). Começou a crescer no prato, ia virar um boi, um boi carnívoro, iria devorá-lo! Tinha que dar cabo daquele monstro, legítima defesa! 

Já suando frio por todos os poros do corpo, teve então A idéia. Primeiro pequeno ponto negro, um cisco escondido nas pregas cerebrais. Foi crescendo, tomando forma, cara e jeito de idéia. De jerico, claro. Nessas horas as idéias de jerico estão sempre a espreita. No desespero parecem idéias bem razoáveis. Na verdade lhe pareceu a melhor idéia do mundo! Mas sempre levam ao caos. O negócio era a Fifi, a poodle preta que estava no quintal. O que poderia dar errado? Tudo, lhe diria a razão. Nada, lhe dizia o desespero! A janela, o garfo por baixo do bife, e vup! Fifi vai ter uma bela janta! Adeus bife de fígado. Esperar. Mais um pouco. Quase. Agora. Ia dar. Fechou os olhos e ...paf! Paf?

Breque. Qual a coisa mais surpreendente que poderia acontecer numa hora dessas? Cair um homem nu pelo telhado em cima da mesa de jantar? Uma manada de elefantes atravessar a peça? Talvez um batalhão de hindus invadisse a casa para tentar salvar o pobre boi que jazia em bifes sobre a mesa? Seria sorte demais. O que aconteceu foi a coisa mais surpreendentemente simples, mas nem por isso menos desastrosa. Na vidraça fechada, o bife de fígado escorria em direção ao chão enquanto a Fifi pulava feito doida tentando abocanhá-lo através do vidro pelo lado de fora. Alguém havia fechado a vidraça!

Silêncio. Sepulcral. Nem uma mosquinha. Todos de boca cheia aberta e olhos arregalados. Quando o silêncio já se tornara insuportável, a espantada senhora, entre incrédula e ofendida, ainda tenta resgatar uma raspa de dignidade para o pobre moço:

- Se não gostava de bife de fígado era só dizer que eu fritava um ovo...

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