NUM VELÓRIO
Paulo Panzoldo

A noite já ia longe e as poucas pessoas, já cansadas, que cercavam o defunto deitado no caixão ali na sala, ainda não se tinham habituado ao silêncio. De vez em quando, alguém soluçava sem choro, dando uma demonstração de melancolia. O cheiro das velas derretidas, misturado ao perfume das flores dava uma desconfortante sensação de comunhão com a morte. Morto é assim: tem olhos e não vê, tem ouvidos e não ouve. De sujeito, passa a objeto inerme das paixões dos que ficaram. De sua vida, só restam um nome e duas datas escritos num pedaço de pedra. De agora em diante, será interpretado, julgado, absolvido ou condenado ao sabor de egoístas conveniências.

A madrugada veio chegando e, com ela, vieram chegando os parentes e alguns poucos vizinhos. Alguém passa com uma bandeja e oferece um cafezinho. A noite ainda vai ser longa. Dentro da sala, o silêncio é quebrado com os tradicionais "são coisas da vida", "que coisa, não? Tão de repente...", "meus sentimentos", "meus pêsames", "seja forte, minha tia, se precisar de alguma coisa...". Lá fora, a "causa mortis" era o tema da conversa.

- Pobre tio. Era tão rico e morreu tão pobre. Viu só o caixão? Quem diria...

- Não fale dele assim, afinal ele sempre te ajudou.

- Lá isso é verdade, mas gastava tanto com mulher... dava pra ter ajudado um pouquinho mais.

- Pois é, caiu na bebida e na gandaia.

- Fumava...

- E como fumava, dava dó de ver. E tinha diabetes.

- E pressão alta. Eu li numa revista que a diabetes tem matado milhões por aí. A metade nem sabe do que morreu. A outra metade sabe que está com o pé na cova e que se não se cuidar, vai ter lá com o titio antes do tempo. 

- Mas morreu mesmo foi de desgosto! - disse um até então desconhecido vizinho do falecido, o Osvaldo. Seu tio era homem do campo, sabia montar, laçar, domar, matar verme e bicheira, não era homem de cidade. Ficou rico no campo e gastou tudo na cidade. Veio mais pelos filhos, mas aqui encontrou foi nada. Nada pra fazer, nada em que trabalhar. Acabou foi caindo na bebida. Gastou tudo o que tinha e agora só ficava mesmo era em casa, vendo o tempo passar. O banco encerrou-lhe a conta e o cartão cortou-lhe os créditos. Os amigos, os parentes, os filhos formados, todos sumiram. Só ficaram os credores, que não saíam da porta. A Rosa trabalhando, pois quem sustentava a casa mesmo era ela, com seu salário de professora. Quis meter-se na política, mas a Rosa dizia que política não era coisa pra homem grande, forte e honesto como ele. E ele foi levando a vida assim, resignado, quietinho, e de repente, morreu.

A roda foi se desfazendo.

Lá dentro, o cheiro das flores ainda se misturava com o cheiro da cera das velas. De vez em quando, alguém soluçava sem choro, demonstrando alguma melancolia.

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