CHEGOU O INVERNO
Rafael Antonio Chedid

A cadeira de balanço, vazia, ia e vinha preguiçosamente, embalada pelo ritmo do vento gelado do mês de agosto. Mais adiante, as folhas palmadas do pé de plátano não resistiam e sucumbiam ao pequeno rodamoinho, até pousarem no chão, onde em pouco tempo murchariam.

Com um pesado poncho de lã sobre os ombros, aproximou-se lentamente da cadeira de balanço, a preferida de Rita, e sentou-se, deixando cair o corpo cansado. Observou por um instante o bailar das folhas. A mão de calos antigos secou vagarosamente um fio de saliva que principiava a escorrer dos lábios.

Com um longo suspiro que deixava transparecer a fatiga, fechou os olhos. E lembrou da primavera.

Os rodeios, as gineteadas, as lidas de campo, as bailantas, as festas de São João, os primeiros acordes na gaita, o entusiasmo juvenil, as aventuras amorosas, Marianas, Rosauras, Joanas e a Ritinha. Ah, esta sim, era única e definitiva. Todas perderam o brilho depois dela. À lembrança do primeiro encontro, abriu um sorriso tímido e chamou por ela:

"Ritinha..."

Mas só silêncio respondeu.

Uma nova rajada de vento retirou-o do seu devaneio.

"Caramba, como faz frio!"

Aninhou-se um pouco mais sob o poncho. Procurou ao longe, sobre a cerca do rancho, os passarinho prateados que por toda vida lhe fizeram companhia. Não estavam lá. Já devia estar chegando a noite, e os alados companheiros deviam estar voltando ao ninho.

Mais um suspiro. Estava cansado. O olhos foram se fechando preguiçosamente, e então ele lembrou do verão.

Comprou um rancho. Casou-se com a china Rita. Belezura de mulher feita. Vendia queijo de carreta. Longas viagens, semanas de ausência e saudade. O retorno sempre feliz. Tiveram seis filhos: quatro homens e duas mulheres. Médicos, advogados, professoras, comerciantes... Ficaram bem de vida. Era homem forte, trazia o bagual firme no braço, as tropeadas com os amigos, a guampa de cachaça, a gaita de fole. Não conheceu tristeza. A mulher o esperando de sorriso e braços abertos a cada volta. Chamou-a novamente, cheio de ternura:

"Ritinha..."

Mas a imagem dela se diluiu, levada pelo vento frio que o trouxera de volta ao agora. Não ouviu nem o barulho do vento nem o ranger da cadeira de balanço. Só o silêncio.

Mas que droga, onde estava todo mundo? Lembrou do primeiro filho que partiu deste mundo, e esta lembrança trouxe consigo o outono. Viu a modernidade chegando, a televisão, os eletrônicos, os primeiros netos, mais um filho se foi, suas costas doíam, as bailantas foram desaparecendo, os rodeios exigiam mais esforço físico, o rancho era muito grande, foi vendendo em pedaços, o gado escasseou. Os filhos apareciam de quando em vez, os netos (e bisnetos) quase nunca. Mas ele e Ritinha tinham um ao outro. Ainda dava para ser feliz assim. As noites de furiosa paixão foram substituídas pela tranqüilidade da compreensão, do companheirismo, da cumplicidade.

Pensou ter ouvido um barulho lá dentro. Moveu-se, sobressaltado. Devia ter dormido. Já estava escuro, só os raios indiferentes da lua permitiam ver alguma coisa. Apurou o ouvido, mas não escutou nada. Só o silêncio.

Mais folhas caíram do pé-de-prata. Aquela árvore, ele e Ritinha a tinham plantado quando foram viver ali. À sua sombra cresceram os filhos e floresceu a vida. Até que Ritinha adoeceu, e chegou o inverno.

Não sofreu com a doença. Morreu em seguida. A vida passou a ser quase solitária. Já não montava o bagual, alçar a perna era muito custoso. Sobrou um dinheirinho para as despesas. Não via televisão, não ouvia rádio. Às vezes, à noite, pensava ver a sua Rita. Sonhava. A geada dos anos lhe branqueou os cabelos. Não raras vezes dormira ali, na varanda, sob o céu de estrelas. Sim senhor, viveu bem a vida. Não entendia bem este mundo. Melhor nem tentar entender. Fechou os olhos. Já estava indiferente ao frio de agosto. Sua cadeira começou novamente a balançar, como que impulsionada por mãos invisíveis. Devia ser o vento. Melhor assim, podia dormir. Nas suas narinas, uma suave fragrância. Reconheceu o perfume de Ritinha. Sorriu. Ele sabia, era ela. Teve a sensação de que uma mão suave, de carícias conhecidas, tocava-lhe o ombro. Sem abrir os olhos, moveu sua mão trêmula e tocou aqueles dedos suaves. Apertou-os num gesto carinhoso. Sorriu, de leve.

"Ritinha?"

Silêncio.

Silêncio.

Silêncio...

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