ESPELHO
Shirley Kühne

Cada dia tem uma cilada. De sons, cheiros e morte.

Aprendeu a andar olhando o céu sem sentir as pedras nos seus pés.

Encerrava seus dias feito pauzinhos inscritos na parede, como os prisioneiros demarcam seu degredo no calendário de suas existências.

A cidade cantando seus ruídos e ele a observar os passos dos cidadãos, o sibilar dos pneus e o espocar de motores. 

Queria, só às vezes, estar só. Mas as pessoas o observam. Querem saber o que pensa, quem é, que idade tem, qual a cor dos seus olhos atrás dos óculos escuros. Por que anda descalço.

A sua solidão compartilhada feito náufrago acompanhado de destroços, peixes, ondas e amanheceres. Mas sem ouvir o cantar de gaivotas prenunciando a vida.

Precisava ficar só, mas não consegue. Os fantasmas passados também o acompanham feito sombras. O que foi, fez, o que lançou fora.... 

Há um tempo de colher. O quê exatamente ele plantou?

No parque, o céu: tecido azul de rendas verdes. Os seus pêlos e cabelos como antenas a decifrar os movimentos da luz, da brisa, dos bem-te-vis.

Imerso no verde. No escuro d'alma. As pedras nos pés e os olhos na imensidão. O mundo se alimenta da sua vontade. Também é um consumidor. Mas os bancos não são só os da praça. Há mais bancos que praças. Há mais desejos e menos feitos. Há mais dívidas do que dúvidas.

Aguardava ansioso a hora de estar consigo, com os pássaros alinhavando o seu silêncio em cada galho de árvore. 

Naquele dia não haveria mais espelhos para ele. Perdido no reflexo do lago, conseguiu finalmente ficar só.

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