PERDIDOS
João Peçanha

Com a testa franzida como quem não acredita no que seus olhos vêem, parado na calçada silenciosa imersa naquele mundo estrangeiro, um homem segura nas mãos sua carteira e olha para a cédula de identidade amarfanhada, incrédulo.

Ele explora melhor a carteira e encontra alguns documentos, sinais incontestes de que ele existe mesmo nesse mundo: chama-se Leandro Flores, e, checando a data de nascimento e fazendo subtrações tortuosas, completou trinta e quatro anos mês passado. O asfalto lhe telegrafa, nas poças prateadas bordeando a sarjeta manchada de óleo diesel, uma nostalgia de chuva e ele confessa a si mesmo que não sabe, não tem a menor idéia de quem é ou por que estaria ali, naquela cidade de que nem desconfia o nome, observando essa chuva fabricada que cai do ar-condicionado barulhento acima dele e martela renitente seu crânio, em chamas e confuso. Olha ao redor e supõe que talvez seja cedo, muito cedo, algo próximo das cinco horas da manhã: a cidade está vazia e há uma sugestão de dia surgindo atrás de cada esquina imersa em penumbra. 

No entanto, ele não sente a boca pastosa e muito menos os olhos arranhando, como quando se acorda. A impressão que ele tem é a de que acabou de despertar sem ter, no entanto, nunca dormido. Recém-nascendo de um útero gigante e imaginário, de um ânus absurdo que pulsa por todos os cantos desse mundo desconhecido e expele criaturas que deveriam sobreviver ali por alguns anos. Pois já nasceu assim, com trinta e quatro anos e sem destino algum. Sem memória, sem nada. Uma criança incriada, um feto jogado, num corpo adulto, num mundo estranho e cinzento que insiste em amanhecer, célere.

Senta-se na calçada úmida e chora, envergonhado por estar chorando.

Andou pela cidade o dia todo e não encontrou uma esquina, um cheiro ou um som ao menos que o remetesse a algo próximo da memória. Almoçou restos de um restaurante, à beira de um latão de lixo coalhado de outros restos menos aproveitáveis, disputados com fúria e pressa por homens e mulheres de olhares perdidos e unhas enegrecidas.

Só no final da tarde, quando estava em frente a um ponto de ônibus que, a cada minuto, recebia uma onda de pessoas, egressas da fila de dezenas de ônibus farfalhando fumaças que as despejavam em seqüência, que viu uma mulher de corpo franzino, cabelos louros com raízes castanhas denunciando que os pintava, um batom vermelho bonito sobre a pele branca, braços finos, pernas magras mas bem desenhadas, seios bem pequenos e maçãs angulosas, fazendo com que o rosto dela se parecesse um triângulo de ponta-cabeça. 

Ela vestia um conjunto de saia e blusa com o logotipo de uma famosa loja de departamentos e andava tentando se equilibrar nos saltos dos sapatos que a faziam parecer ainda mais alta e esguia, e uns olhos! Uns olhos! Grandes e amendoados. Mel. Claros, quase mel. Ela o olhou e, diante da paralisia dele, seguiu pela calçada empinando o nariz pequeno, dobrando a esquina logo à frente, não notando que o homem aturdido percebeu quando ela consertou displicentemente o elástico da calcinha que insistia em suas invasões sob a saia de algodão: plec.

Ele a seguiu.

Ela caminhou pela rua íngreme por três quadras e dobrou à direita, entrando num prédio cinza de três andares e plantinhas miúdas brotando do emboço carcomido. Ele chegou logo depois dela bater com força a porta do prédio, pesada e de metal escuro, a ponto de poder escutar sua voz, clara, feminina e grave: mãe, cheguei. Morava com a mãe, pensou, e naquele momento desejou de todo coração que se chamasse Isabel, sem no entanto entender por que desejava aquilo — afinal de contas, Isabel não era um nome que o remetia a nenhuma lembrança, será?, a nada que mexesse com ele, quem seria Isabel?, sabia sim que chamava-se, ele próprio, vira na carteira, Leandro, nome com que não se identificava mas estava lá, tangível, concreto e impresso no papel verde: Leandro. Resolveu subir e bater na porta estreita de madeira, onde a vira entrando há pouco. Uma mulher imensa de gorda, testa porejando suor, usando um vestido gasto nas barras e florido, de mau gosto, cheiro de gordura exalando de toda ela, abre a porta e o olha de alto a baixo.

— Isabel está?

A mulher gorda vira-se e grita: 

— Isabel! O Leandro veio te ver!

— Pensei que estivesse fingindo que não me via.

— Onde?

— No ponto de ônibus.

— ...

— Então?

— Não sei. Nós nos conhecemos, é isso?

— Vá a merda, Leandro! A gente namora, porra!

— Não me lembro...

Ela levanta de pouco os ombros e o puxa pelo braço, fechando a porta atrás dele. Ele olha à volta e não reconhece aquela sala coalhada de retratos de parentes e santos, aquele cheiro nauseabundo de incensos doces, misturado à gordura queimando no fogão ensebado e descascando, aqueles móveis de péssima qualidade e gosto duvidoso, aquele pôster da seleção brasileira penta-campeã ou a voz longínqua daquele pastor, tentando amealhar alguns fiéis para a sua seita que mantém-se com gritos, exorcismos dramatizados e contribuições sempre bem-vindas. Ele percebe-se estranho ao murmurinho de vozes que sobe do respiradouro do prédio em pedaços e ao som de um cão distante, ladrando sem parar. Sente que as roupas colam em seu corpo e que há nódoas redondas sob seus braços. O calor aumentou naquele apartamento miúdo e sua testa vira um rio de suor. Precisava de um banho.

— Eu pego a toalha. Vai entrando que eu levo lá pra você.

Ele obedece, meu deus, quem é esta mulher?, tira toda a roupa e abre o chuveiro. A água vem quase em gotas, está entupida a porra do chuveiro, merda! Uma lufada de vento no banheiro. Isabel afasta a cortina de plástico já empretecida de mofo nas pontas e entra no box com ele, nua, meu deus, o rádio de algum vizinho anuncia o show de uma dupla sertaneja de que ele nunca ouviu falar mas com certeza teria vozes estridentes e rimas pouco originais, que corpo esta mulher tem, a voz do pastor anuncia outro exorcismo ao vivo, ele pousa as duas mãos sobre as ancas magras, ela então pega a mão direita dele e a coloca sobre o seio esquerdo, pára de latir cachorro filho da puta!, fechando os olhos e suspirando, a Berenice ainda não chegou?, ela encostando o corpo no corpo dele, bicos dos seios pequenos roçando seu braço.

— Eu trouxe toalha pra nós dois.

— Eu não tenho roupa para trocar.

— Eu te empresto um short, amor. Relaxa, vai.

— Mas eu não...

Ela encaixa grotescamente seus quadris no corpo dele e cochicha, voz forçadamente rouca, língua molhada invadindo sua orelha esquerda:

— Cala a boca, seu chatinho. Tô com saudade...

Ele acorda ainda tonto, deitado sobre uma colcha de chenile abóbora, a cabeça pesada no travesseiro fedendo a perfume barato. Olha para cima e vê, esquecido pela penumbra, um oratório com uma figura calva de um santo e um papel embaixo escrito Santo Antônio. Um ventilador enrodilha-se rente ao teto do quarto miúdo, esforçando-se para refrescar aquele quarto, aquele bairro, aquele mundo de calores úmidos e corpos cansados e o mundo lá fora está mais calmo e sem vozes. Ele olha para um relógio de plástico com o Mickey adornando o mostrador: quinze para uma da manhã. A seu lado, Isabel ressona. Ele sente um cheiro forte no ar, como animais dilacerando-se pela fêmea nos documentários da televisão, um odor acre, e se lembra que eles dois foderam até cansar naquele banheiro e naquela cama, protegidos pelo alheamento conveniente da mãe obesa e do pai sonolento. 

Talvez amanhã ele pense em algo. Talvez amanhã tudo volte ao normal e ele se lembre de que sempre viveu naquele bairro, de que conhece Isabel desde quando os dois eram pequenos, de que a primeira vez que foi para a cama com uma mulher foi com Isabel, de que sempre torceu pelo flamengo e de que um dia foi chamado para um programa de auditório para responder perguntas de que nem desconfiava as respostas e de que havia voltado sem um tostão para casa. Talvez amanhã também se lembre que se chama Leandro Flores, que nunca em sua vida de merda tinha ganhado uma rifa de frigideira que fosse, que tem trinta e quatro anos, perdeu os pais aos dez numa enchente avassaladora e que, na véspera deste dia quente e pegajoso, assassinou um homem por dinheiro, a mando de um traficante do bairro, em troca de algum trocado; que vive pelas ruas, aturdido como sempre, um fantasma do que previam que fosse quando era criança, e que aquilo, tudo aquilo que o sempre o rodeou e para sempre o rodearia, era mais do que merecedor de todo esquecimento do mundo. Talvez amanhã não precisasse mais procurar por si mesmo.

Adormece como um animal: pesado, feliz e destituído de qualquer pensamento.

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