QUEM AMA O FEIO...
Samuel Silva

Estava distraído, ouvindo e acompanhando em alto volume um antigo sucesso do Creedence Clearwater Revival (CCR, para os íntimos), gritando aos pulmões dobrados a pergunta se alguma vez vira a chuva (ou algo assim, já que meu inglês é de internet), e quase errei a curva para entrar na larga avenida, surpreendentemente tranqüila para o horário. O repórter aéreo diria que o trânsito estava intenso, mas não lento, o que para ele era fácil dizer, aéreo que era. 

Respondi mentalmente que tenho visto chuva, sim, mas nem tanta quanto gostaria neste calor senegalesco que nos maltratava a todos quando, pelo retrovisor lateral, vi um movimento de gente se aproximando. Rápido de reflexos treinados no dia-a-dia dessa nossa selva urbana, acionei os vidros e travas elétricas e me posicionei tenso no aguardo de um ataque, enquanto tentava focar com os olhos míopes a ameaça iminente.

Era uma garota, talvez de treze anos de idade, talvez mais em sua subnutrição, roupa velha e desgastada. Ultrapassou-me e à frente do carro iniciou alguns malabarismos toscos com bolas de tênis. Uma das bolas caiu ao chão perto da minha porta e quando ela se abaixou para pegá-la, descuidada de si, vislumbrei seus seios adolescentes, em formação ainda, morenos, de bicos escuros mas pequenos e rijos como são nesta idade, pontas de dedos mindinhos apontando por trás do tecido, arrogantes em sua quase nudez. Ela vestia o que já fora uma camiseta de grife, GAP, estava escrito em letras pretas desbotadas, cortada um pouco acima da cintura. Vestia ainda um short masculino, desses de futebol, amarrados com cadarços na cintura fina fazendo pregas e mais pregas no tecido. Era novinha mas bem gostosinha, a menina, uma produção de butique e salão de beleza a melhoraria bastante, como aliás se dá com as mulheres em geral.

Olhei o rosto que me encarou pelo vidro fechado, cara amarrada de insatisfação pela vida, pelos meus olhares, pela bola caída, ou por tudo isso junto. Os olhos eram negros e bem redondos, crescidos do efeito da cola que devia ter cheirado há pouco tempo, brilhavam molhados do efeito químico. Olhos bonitos, mas sem emoção, parados naquelas lonjuras aonde a droga barata a levava, atrás de minha cabeça. O nariz achatado, tipicamente negróide, compunha bem o quadro geral de núbil beleza africana aninhado num rosto oval de testa alta encimada por uma carapinha de cabelo cortado rente, sem frescuras ou preocupações estéticas, apenas de praticidade de quem vive do pouco ou nada que da rua se tira. Sorri, pensando no jogo infame de palavras que surgiu no meu pensamento: núbil beleza núbia. Parecia coisa de Sienkwiecz (é assim que se escreve?)... Não importa, já não era herói de quinze anos fazia muito tempo!

Ela pareceu falar algo, tentei ler os lábios grossos, mas conformes à idade e etnia, escondendo dentes possivelmente desfalcados - e ela sabia disso, pelo jeito que movia a boca - apenas um buraco rasgado naquele crepúsculo engarrafado de carros. Tomei coragem e abri o vidro à metade para ouvi-la, a curiosidade prestes a me fazer gato, quem sabe.

- Tio, me dá um dinheiro?

A frase era um pedido, mas nos olhos não havia emoção, a inflexão monótona de script de televendas antigo. Perguntei o que fazia àquela hora na rua, a resposta foi um simples balançar de ombros entediado e a alça da camiseta caiu quase ao cotovelo, deixando a pele mais clara do colo à vista. Falei algo que nem eu entendi, obnubilado pelo contexto, pela imagem, por uma consciência ancestral que se insurgia e ressurgia em mim. Ela também não entendeu, acho, mas arriscou o que me pareceu à hora um sorriso discreto, tímido ou intimidado.

- Quer dinheiro? Eu posso te dar algum.

- Então dá, tio, tô cum fome.

Iniciei um diálogo surreal, em que meu ego caridoso se recusava a simplesmente dar dinheiro para a menina comprar cola ou coisa pior e manter-se naquele estupor das drogas. Não dou dinheiro, mas pago a comida, lembro de dizer e insistir e ela acedeu com a cabeça, indicando uma lanchonete mais à frente. Liberei a trava das portas e ela entrou deslocada no carro pela porta de trás mesmo, nem se deu ao trabalho de contornar e entrar pelo lado do carona. Demonstrou estar desconfortável, mas a fome ainda é a rainha do desconforto. 

O trânsito não ajudava muito, pouco andei.

Cheguei em uma esquina e de súbito saí da avenida pela rua menor, pretendendo dar a volta no trânsito parado até a lanchonete, duas quadras à frente, mas a menina assustou-se com a manobra, enrijecendo-se no assento. "Toda rija", pensei comigo, com o canto dos olhos tateando a silhueta da menina, os bicos dos seios cutucando a camiseta, as pernas finas e até cumpridas para a idade esticadas como se freasse flintstoneamente o carro. Estiquei a marcha, segui até um bar mais à frente, não a lanchonete da avenida principal. Mandei-a esperar no carro, levei as chaves, pedi um misto quente e uma lata de coca-cola. Não, pepsi twister, ela deveria gostar mais, crianças gostam do sabor doce-azedo da cola com limão. Paguei e voltei e entreguei-lhe o sanduíche, enquanto mantinha a lata aberta na minha mão. Ela comeu apressada, sem sentir o gosto, a premência quem ditava era a fome, não o paladar. Esticou a mão para pegar a lata. Era a hora do meu jogo, o rádio anunciou a hora do brasil. 

Servi a pepsi da lata direto na boca da menina, deixando cair um pouco pelo queixo até a camiseta. Pedi desculpas pela minha falta de jeito e com um kleenex comecei a enxugá-la, sentindo sob o papel fino e úmido a pele macia, quente. Sem olhá-la, sem tirar minhas mãos dela, avancei o carro até um ermo mais escuro de uma praça mal cuidada. As portas estavam travadas e ela sabia pois não tentou sair, seria loucura, o carro em movimento...

- Tio, o que vai fazer?

Não respondi, desliguei o carro, ouvindo o noticiário do congresso. Eu disse que ela era bonita, que não merecia aquela vida. Peguei uma nota do bolso, graúda, apenas mostrei, guardei no bolso. "É sua", eu disse. "Faz assim..."

Eu a guiei, passo a passo, até ela me tocar e sentir que eu estava ali, minha mão em seus seios, agora por baixo da camiseta sentindo aquele coraçãozinho pulsar loucamente e acreditei que era excitação e desejo por mim. Afastei minha barriga, abri o zíper da calça, prometi picolés e pirulitos e ela riu, meio engasgada, achei que riu, parecia riso, riso de criança chupando sorvete de limão numa noite quente.

Depois voltei para a avenida principal, o engarrafamento diminuíra, Dei a nota graúda para a menina, ela levou a nota e uma folha extra de kleenex, nem olhou para trás. Nem eu, tampouco. Gosto de ajudar. Gosto de crianças. Ela ganhou mais do que imaginou e aprendeu que a vida tinha muitos caminhos, alguns mais penosos que outros, alguns nem tanto, mas que nada na vida era de graça e que tudo tinha seu motivo.

Não dizem que "quem ama o feio, bonito lhe parece"? Amo os pobres e os miseráveis, mais ainda os novinhos, antes que morram pela fome ou pela miséria, antes que as doenças e a subnutrição amoleçam seus seios, suas bundas, lhe extraiam os dentes, amassem seus rostos e retirem toda a carne de sobre seus ossos. Amo a pobreza e a miséria, elas são para mim belas em sua dramaticidade, em sua fatalidade, em sua perversão do que é meu mundo branco, limpo e cheiroso. Na minha paróquia, prego pelo exemplo, ensino através de fatos que eles possam entender.

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