AUTOFAGIA
Beto Muniz

 
 

Dia vinte e três de fevereiro de dois mil e três eu cometi suicídio.

Deixo por escrito os dados sobre minha morte numa tentativa de evitar conjecturas e análises específicas para determinarem dia e hora do suicídio. Não imagino por quanto tempo meu corpo ficará se decompondo até ser encontrado, por isso deixarei esta carta ao lado de onde pretendo tombar sem vida (lembrar de fechar as janelas). Assim que corpo e carta forem encontrados, os interessados saberão que optei pelo auto-extermínio quando contava a idade de quarenta e dois anos, oito meses, vinte e três dias, quatro horas e trinta e dois minutos. Não sei se são números exatos, estou me baseando nos dados do assentamento em cartório declarados pelos meus pais. A única certeza que eu tenho neste instante é que sou uma calamidade. Um fracassado.

Acendo um cigarro e não acho o cinzeiro. Diante de mim há um espelho. Nele vejo um rosto comum onde o que se destaca são os olhos castanhos. Fascina-me a facilidade destes olhos em chorar. "Homem não chora" - parece que ouço a voz do meu pai quando me repreendeu por apanhar margaridas no canteiro da praça. Era apenas uma criança querendo levar pra casa as flores mais belas que encontrara. Deixei as flores em paz e passei a chorar escondido de todos desde então. Se a preocupação paterna foi quanto à masculinidade de seu descendente, mantive-me hetero para orgulho de todos nossos antepassados. Daquele passeio apenas o fantasma das flores apanhadas e mortas por nada perdura na minha mente, esculpindo o meu psicológico.

Ao longo desses quarenta e poucos anos desenvolvi uma absoluta competência em iniciar profissões, relacionamentos, sentimentos e outros empreendimentos sem nunca terminar nada. É como se cada ação iniciada fosse interrompida no seu intento para lembrar as margaridas abandonadas na grama. Jamais alcancei resultado final em algo. Nasci com o espírito dum empreendedor, porém não desenvolvi a qualidade de acabativa, todos meus sonhos estão incompletos, e até minha figura é inacabada. Sou meio calvo, meio barrigudo, altura mediana, dezoito dentes na boca e tenho a saúde alvoroçada por uma úlcera no estômago. Não mata, mas também não tem cura. Minhas condições financeiras são inconsistentes. Consigo manter meus pequenos, vícios como vinhos e cigarros, no entanto, faz algum tempo que não bebo uma cerveja gelada, pois não consigo crédito para comprar uma geladeira e sempre que tento consertar o defeito que mantém a porta da velha geladeira aberta, não termino o serviço. Como sempre, em tudo eu chego até a metade, de nada dou cabo... Exemplo esse cigarro que esqueci queimando a beirada da mesa.

Devido a essa minha característica não fui capaz de realizar os mínimos sonhos. Sempre quis tocar algum instrumento musical. Invejo quem toca sax e desde os treze anos estou vagando no limbo destinado aos que sabem dedilhar um violão sem jamais tocar uma música por inteiro. Os intervalos, e o comprimento destes, entre as notas musicais são para mim segredos quase desvendados, porém contém certos mistérios ainda. No teatro encantei-me com a construção dos personagens e por um tempo trabalhei o posicionamento em cena e a impostação da voz. Abandonei os palcos após encenar um Otelo pardo na cor e nas emoções. Não alcancei as atormentações do Mouro e preferi ficar na platéia aplaudindo, enciumado, o meu substituto na peça. Flertei com as outras Musas, mas em nenhuma arte consegui desenvolver conhecimento maior ou habilidade a contento. Sei desenhar uma paisagem imaginária, porém, me perco nos traços de um rosto ou de uma mão. Escrevo cartas, tratados, artigos, contos e crônicas que nunca serão publicados. Talvez consiga que um leitor termine a leitura de uma de minhas poesias, no entanto carrego a certeza que ninguém vai se acomodar na cadeira para reler um texto de minha autoria. Nas exatas aprendi as operações básicas sem jamais decorar uma tabuada. Nas humanas basta dizer que sou uma espécie de ermitão cuja maior entrega será descrever, aqui nesta carta, a saída do convívio social e exílio neste canto de mundo que agora tomarei por túmulo.

Auto-exilei-me porque conviver com a mesmice das pessoas me incomodava. Nenhuma pessoa em especial e todas no geral. Elas foram me causando desinteresse na medida que eu descobria seus medos. Medo que durante algum tempo eu fazia questão de incutir nos desconhecidos que cruzavam meu caminho. Descobri o sabor presente no medo alheio durante uma caminhada noturna. Tentando espantar a melancolia que o inverno me impõe na alma (noites frias me são tristes e deprimentes), eu caminhava filosofando considerações sobre o 'Ceticismo e fé animal' do George Santayana, quando percebi a mulher hesitante entre cruzar comigo na calçada ou atravessar a rua. Cheirei seu medo. Estranhamente lembrei de meu pai com seu medo disfarçado diante das margaridas que eu apanhava. Fiquei excitado com o odor e com a possibilidade de enfrentamento. Parei e aguardei ela decidir qual seria seu rumo e então tomei a mesma direção. Minha atitude fez seu corpo exalar mais do odor que espantava minhas angústias. Ela exalava pavor. Encarando-a de perto, dentro dos seus olhos, pude ver e ouvir seu medo acelerando o compasso do coração. Pude sentir as forças abandonarem aquelas pernas gordas, o perigo iminente provocava uma mistura de cheiros e sons. Dentes, joelhos e coração batendo desgovernados. Música para minha alma! Seu grito soou como uma saraivada de tiros tentando abater o poder de decisão sobre vida e morte que eu emanava contra ela. Inútil. Ela gemeu uma súplica, pediu por favor, ofereceu a bolsa, chorou. Seus medos ricocheteavam em meu prazer e se dispersavam no escuro. Eu pairava acima do bem e do mal enquanto, lentamente, abandonava aquela criatura paralisada pelo terror. Não fiz nada contra ela. Poderia, se não estivesse tão frio para tirar as mãos do bolso.

O gozo proporcionado nestes breves segundos deu origem ao vício, que, como todos os outros, me inebriou, alimentou, saciou as fomes da alma para depois me subjugar. Durante anos vaguei por ruas, vielas, parques ou cantos vazios do mundo onde eu pudesse impor minha presença sorumbática ao transeunte notívago e solitário. Para cada pessoa amedrontada diante de mim eu imaginava um gesto fatal que mudaria a sua vida e a minha. Não percebia a fome crescer noite após noite. Troquei meus modos, meus vestuários, meus amigos e amores para satisfazer a dependência. Com o tempo passei a andar armado. No princípio pensava me proteger de eventuais perigos noturnos. Depois, por vezes incontáveis, eu me vi abrindo um orifício na testa de uma vítima. Certa noite eu cheguei a sacar, apontar e armar o cão. Visualizei o medo escapando pelo buraco aberto na cabeça do corpo que caiu. Deleitei-me como um mendigo, ou como um deus! Um soluço conformado me trouxe à realidade e eu fugi deixando o moço ajoelhado diante do nada.

Nessa noite eu percebi que a fome aumentara e apenas o terror incutido em minhas vítimas não a aplacava. Passei a procurar por alguém que não se amedrontasse com a simples visão duma figura sombria. Virei um caçador. Buscava por alguém que não titubeasse ao me ver numa viela escura. Alguém que também se alimentasse da noite e do medo. Eu caçava. Se no começo minhas vítimas não corriam perigo de fato, desde então elas passaram a correr risco real de morte! Não medi esforços e me especializei predador para incutir o medo nas outras criaturas que, como eu, viviam das sombras. Depois me desinteressava delas. Quanto maior o terror exalado, maior meu desinteresse. Uma noite qualquer meus métodos não funcionaram e não consegui plantar o medo no meu oponente. Na urgência do embate foi gerado um impasse: ir até as últimas conseqüências ou desistir? A resposta funcionou como um despertador e, ao acordar, percebi que nunca quis e jamais mataria ninguém. Então sublimei essa estranha fome e me afastei das sombras, das pessoas, de mim.

Encontrei esse pedaço de fim de mundo, distante de tudo que lembra a urbe. Iniciei a construção desta casa, mas como sempre não terminei. Aqui eu perdi a contagem das horas e não consegui vencer a abstinência de medo, porém já não preciso voltar à cidade e me tornar um vampiro cuja saciedade vem do pavor alheio. Desenvolvi um canibalismo complexo. O sabor que me invade agora é o mesmo que experimento desde que comecei a escrever esta carta; estou me alimentando do medo que tenho de mim. Uma autofagia insana e divina diante do poder de vida e morte me embriagando... Tudo posso!

Definitivamente pairo acima do bem e do mal e visualizo a vida, minha própria vida, se contorcendo em desespero e terror diante da arma engatilhada que tenho nas mãos.

Talvez alguém sinta pela minha ausência. Talvez ninguém se lembre da minha existência. Pouca gente sabe para onde vim. Meu filho! Quem mais me visitou foi meu filho, que eu não terminei de criar. Ele vinha me visitar semanalmente - foi quando iniciamos o plantio de dois canteiros de alfaces, depois passou a ligar duas vezes por semana e vir uma vez por mês. Sem que eu pedisse, ou o proibisse, ele deixou de vir. Permaneceu um tempo ligando uma vez por mês, que logo passou para uma vez por bimestre, uma vez por semestre, até finalmente não termo assuntos para mais que um minuto de conversa no Natal, dia dos pais, aniversários. Quando ele parou de ligar eu fiquei esquecido neste pedaço de mundo e atualmente recebo um telefonema por mês. Cobrança de uma dívida que nunca pagarei.

Tento mensurar o tamanho de minha solidão - acendo outro cigarro, meu corpo, este que sente sua existência chegando ao fim, está arrepiado. Da cabeça aos pés. Acalmo o pavor crescente com o pensamento de que ainda não posso acionar o gatilho. Antes é preciso regar o vaso de margaridas. Também convém fechar as janelas. Talvez meu corpo seja encontrado antes que a terra seque e as flores morram. É um êxtase, misto de terror e prazer, pensar que ao finalizar esta carta, que possivelmente será incluída entre as poucas coisas que consegui terminar em vida, eu vou cometer suicídio. A data de minha morte está grafada lá no início... Sinto-me invadido por uma conhecida sensação de saciedade. Não mais existe fome a ser aplacada e tudo que experimento é uma estranha paz. O auto-extermínio será a grande obra, algo que terei executado por inteiro em minha conturbada existência, o que me salva do completo fracasso. As demais obras, todas elas, deixo como os canteiros de alfaces: inacabadas.

Acendi outro cigarro e não fumei. Acrescentei mais uma marca de queimado na borda da mesa enquanto fui ver o canteiro das alfaces. Algumas lagartas estão devorando o que seria minha salada. Apesar do desleixo eu gosto de plantas, cuido bem do vaso de margaridas e hoje tem duas flores abertas, uma encobre parte da foto do meu pai que está fincada no meio do vaso. Sempre achei que deveria ter plastificado essa foto, até cheguei a comprar plástico, mas não usei e por isso papai parece chorar, mas é só uma ilusão criada pelos respingos da água na irrigação diária. Homem não chora! - ele parece dizer.

Acendo novo cigarro e tento lembrar onde deixei o cinzeiro. Encaro-me no espelho e, diante da certeza que não há mais nada a fazer, observo meus olhos castanhos implorando para não chorar. Preciso fechar as janelas. O cinzeiro está no quarto! Mania antiga de perder o cinzeiro e abandonar os cigarros queimando a borda da
 
 

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