AUTO-RETRATO
Iosif Landau

Um homem atravessou a rua, entrou no edifício, acenou com a cabeça para o porteiro, pegou o elevador, saiu no oitavo andar, retirou as chaves do bolso, abriu a porta, parecia não saber onde estava, o apartamento vazio, quase, deixara para trás o que não valia ser levado, duas cadeiras capengas, uma mesa com o tampo de vidro rachado, um espelho ainda pendurado na parede, odiava espelhos, reflexo indesejável da velhice, era valioso, emoldurado com enfeites de cristal, que faça bom proveito o novo dono, um baú também deixado, de propósito, sua vida, dos que amava, passado doloroso, daria uma última olhada, acordara triste, melancólico, saudoso, mão invisível o empurrou até ele, levantou a tampa pesada com esforço, os álbuns, apanhou um sem hesitar, o mais envelhecido, capa retorcida, o colocou no chão, sentou-se na beira do móvel, um gemido quase mudo, abriu... relíquias sagradas, examinou os retratos... revelam verdades ocultas... com olhar intenso observou o menor detalhe, a sombra mais insignificante, não queria perder nada, o pai, severo, óculos sem aro... uma data, 1920... nem uma única lágrima na morte dele, meses mais tarde descobriu as gravatas borboleta , chorou por causa das gravatas... a mãe, jovem, morena, linda, no retrato segurava um colar... ele não se encontrava lá quando... não chorou no enterro adiado para que pudesse estar presente... a morte rouba o corpo, em vida a pessoa e corpo são o mesmo, na morte não, a pessoa se foi, fica o corpo, não se pode chorar o corpo sem conhecer a pessoa... uma lágrima escorreu... ridículo? uma vez ela lhe dissera depois de voltar da cartomante: “lembre-se de hoje, dessa data, no ano que vem uma coisa boa vai te acontecer...”, nada aconteceu, nem no ano seguinte, nem no outro, nem no outro, mas ele sempre se lembrava daquela data, não que esperasse um milagre, se apegara à lembrança, sou mãe, uma data, virou uma página, a guarnição do oito da Estrela Solitária, nove remadores e um patrão, cinco já falecidos, as reuniões anuais esquecidas há muito,,, onde estarão os outros?... foto após foto, filhos, netos, misturadas sem cronologia, a desordem do amor descontraído, nada de novo a acrescentar, preenchimento de lacunas da memória, confirmação de tristes saudades... estou suspenso no vazio, revejo minha vida, o que ocorreu ontem acontecerá hoje? amanhã? daqui instantes? prolongará a vida? adiará a morte? agora ele era apenas um solitário ou um sábio a descobrir o sentido da existência, isolado, sem enxergar-se, não visto por outros... me isolei demais, quando presente repelia carinhos, abusava do jocoso, não soube... não quis exigir carinho dela, dos filhos, dos netos, um senil precoce, eles emitiam sinais... ele não respondia, não correspondia, ao tentar sentia-se tolo... tolo ainda agora,,, sentia... impossível penetrar a solidão de alguém, ela, os filhos sabem da minha solidão? estar só diante da morte... retirou do bolso uma carteira, retratos amassados, olhou-os como quando num avião perdido numa tempestade... amor e morte, relação direta ou indireta? assustou-se com o irracional, caminhava em círculos, deixou-se ficar perdido... caminho para o inferno, inferno é a memória... o retrato dela, de camisola à beira de uma janela, lua de mel, bela como uma potranca selvagem, enganou-a tantas vezes... perdão, perdão! adianta?... quando um homem desposa uma mulher, seus pecados são enterrados pois é dito: “quem encontra uma esposa encontra algo precioso e recebe um favor do Senhor...”, palavras ouvidas, lidas? ela se casaria de novo com ele? a filha quando nasceu ele havia declarado: “ela será uma rainha!” os filhos, parecidos demais com ele... orgulho ou medo? guardou a carteira, olhou ao seu redor, nada... quem fez isso?... vagando em seu próprio interior, perdido... estou à beira do oculto... suspirou, aspirou? sua vida uma esfera oca, tentou apanhar de novo o álbum, desistiu, ainda haveria futuro para ele? o passado foi irreal? qualquer que fosse a resposta, tudo não passaria de uma fuga do presente, fantasmas em demasia... criara o hábito de contar mortos, seus mortos, talvez sua maneira de render-lhes homenagens já que não ia aos enterros, às missas, escolheria um deles e faria sua prece particular... quem o escolhido? sua risada encheu a sala, ele nem se lembrava da data de nascimento dos seus filhos, dela, como saberia da data do falecimento de outros? estremeceu, levantou-se, caminhou até o quarto... meu mundo está aqui... olhou as quatro paredes, tentou ver nelas imagens, cada parede pedaço de sua vida... minhas primeiras lembranças aos quatro anos... ocorreu-lhe que embora vivo esteve morto durante seus primeiros quatro anos... mais nove meses... subtraiu, dividiu, não conseguiu um número exato, desistiu, mas a memória estava lá, voz que fala, zomba dele... brigar com ela, tentar destorcer fatos? mandar ela parar, retornar à desmemória?... imagens (fotos) surgiram no espaço, rapidez estonteante, contínua transformação, sombra uma da outra... o que estou vendo de fato? não estou mais no presente... fechou a porta... meu mundo finda naquela porta... deitou-se no chão, perto do baú, dos álbuns, das fotos, acariciou algumas, olhou para o teto baço, uma tela de cinema, imagens percorreram sua mente, confusas, pensou ouvir risadas, fechou os olhos, estava cansado...

A mulher aproximou-se:

– é o antigo dono, morou mais de quarenta anos aqui, esqueceu o baú...

Apanhou uma foto da mão do velho e olhou curiosa, indo e vindo do rosto imóvel à foto na mão:

– deve ser ele quando jovem... a vida castiga...

A garota saltitava, canta:

– ... um morto no chão, um morto, um morto, um morto...

– quieta, menina...

A mulher passou os olhos ao seu redor, paredes vazias, esburacadas aqui, ali, manchas de antigos quadros, alguns pregos ainda visíveis, no chão tacos soltos, nas janelas empoeiradas persianas quase desmanchadas, nos cantos das paredes teias de aranha, no espelho tudo refletido, porque será que deixou ele? parou seu olhar no homem estendido no chão.

– a sala... auto–retrato de uma vida... o espelho a fotografia... 

– mamãe, mas ele está morto...

– então é da morte, é quase o mesmo... quieta, menina, vá chamar o porteiro... meu Deus, que confusão... 

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