A ALMA
Claudio Alecrim Costa

Pois não é que dizem que os olhos são as janelas da alma? Aquelas curvas que pareciam ondas se formando num imenso mar azul desenhavam os olhos mais lindos que já havia deitado os meus, fixos, como que hipnotizados. Que alma poderia se esconder invisível por trás de tamanha beleza? Meu coração batia veloz e uma eletricidade percorria meu corpo. Sentia a ponta afiada de uma flecha trespassar meu peito. Ela então falou suavemente:

- Oi!

Fiquei congelado. Um nó, bem dado, prendia as palavras que me sufocavam e tiravam o fôlego, precipitando a morte que Shakespeare não teria encontrado em suas mais inspiradas obras.

- Oi!

- Senti sua falta...

Aqueles olhos, mesmo sem poder ver sua alma pelas venezianas, continuavam a mirar em minha direção como um raio divino vindo dos céus. Era um milagre. Poderia ser seu escravo. Viveria para suas vontades sem me opor ou contestar, agradecendo cada segundo e saudando minha vida eternizada por um sentimento que mal cabia dentro de mim.

- Eu nunca esqueci...

- Eu te amo. 

- Não repita isso, Paula...

Estávamos numa espécie de cabana que ficava a poucos metros da praia. A lua derramava sobre o mar sua luz cor de prata que chegava a beira em ondas deixando na areia o molhado de saliva que brilha nos lábios dos amantes. 

Eu sentia, de algum modo, que não veria Paula novamente. A mulher dos meus sonhos e de todas as fantasias que pude criar. Queria dar um momento especial para ela. Um instante que não poderia ser escrito mesmo que usasse todo o papel do mundo.

- Seus olhos...

- O quê?

De repente vi sua alma saindo de dentro do azul mais puro de seus olhos. Era obesa e tinha cabelo amarfanhado e o descompasso de uma tuba desafinada. Um horror. O que era a alma? Uma energia? Pois o que eu via tinha a descarga de uma trovoada. Saltei da cadeira e senti que poderia enfartar.

- O que foi, Afonso? Você está bem?

- Estou bem...Quer dizer...

A alma sentou-se, languidamente, como uma pintura de Botero, ao lado da formosa mulher.

- Você ficou pálido...

- Sua alma...

- Minha o quê?

- Nada! Eu disse alguma coisa?

- Você viu minha alma...Que romântico incurável...

- Que horror!

- O quê!

Aquele monstro translúcido continuava a me fitar. Tomaria meu corpo e eu viraria um travesti fantasma.

- Você é linda...

- Você já disse isso.

O vulto começou a bailar em torno da mesa e meu coração disparou.

Tenho que ir ao banheiro. Corri e lavei o rosto. De volta não vi nada a não ser Paula que me esperava com um doce sorriso. Olhei em baixo da mesa, ao redor...

- O que está havendo, Afonso...?

- Ela se foi...

- Ela quem?

Como poderia dizer que sua alma era demoníaca? Toda poesia havia acabado. A beleza externa de Paula não combinava com sua essência e seu corpo trancava correntes que se arrastavam puxadas por um fantasma.

Senti um sopro no pescoço e lá estava a alma de Paula, estranho ser que flutuava como um dirigível atravessando lustres rústicos que enfeitavam o lugar.

- Vamos pedir a conta...

- Vamos para outro lugar?

- Um centro espírita...

- Como?

- Não! Para um lugar mais arejado...

- Vamos para a praia...

A coisa continuava a me assombrar até que voltou para os olhos de Paula e sumiu. Pedi o jantar e um vinho que bebi quase toda a garrafa antes que ela pudesse molhar os lábios. Precisava me garantir de que jamais veria sua alma. Passei a olhar seus olhos com prudência e enfeitar menos minhas fantasias românticas. Não sabia para que outro lugar seria conduzido dessa vez. 

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