MARVADÍSSIMA PINGA!
Doca Ramos Mello

Vassalagem a postos, o burburinho se instalou no ambiente carregado de incontáveis puxa-sacos, que ali perfilavam beija-mãos e idolatria com o fim inequívoco de assegurar a manutenção da boa vontade do supremo suserano, quando, impávido, Vossa Prepotência (V. Prencia.) estacionou seu carro importado diante da Câmara Municipal. A beca, de italiana grife, luzia entre os populares ternos e gravatas ali ostentados. O prefeito recendia a perfume francês, tinha barba escanhoada com esmero, as unhas polidas e o sorriso largo atravessado no rosto, onde mal disfarçava sua arrogância.

Aldo Nepomuceno, o Aldinho Curió, assessor em tempo integral e puxa-saco de dianteira avançada, tão desapetrechado de vergonha na cara quanto de credenciais para figurar no quadro dos primeiros subservientes (onde se mantinha graças a certos favores escusos prestados ao chefe do Executivo), abriu espaço na tropa dos ajoelhados praticamente a machadadas, objetivando ter com seu líder antes de qualquer outro imbecil como ele, para não perder a posição duramente conquistada. Tinha mão forte o Curió, que o testemunhassem a esposa e a amante, e não se mostrava disposto a dar chance nenhuma para que Honorino Andrade, o presidente da Câmara, lhe passasse a perna nos rapapés introdutórios.

Percebendo a competição, V. Prencia. alinhavou aquele sorriso vastamente treinado com seu "agente de imagem" (?!) e desceu do carro importado que todo mundo sabia ter sido presente/propina de uma empresa de construção civil, pisando no tapete de pétalas que Curió tivera o cuidado de patrocianar. Paralelamente, também esmagava os egos de toda a corja ali reunida. Com ele era assim: tinha de ser debaixo de sua bota...

Ocasião soleníssima, V. Prencia. tinha ido à Câmara para ser homenageado, mais uma vez de forma bastante espontânea, isto é, sob encomenda de uma vereador recém-convertido ao seu partido, cuja admissão esteve condicionada a alguns acordos sórdidos, incluindo a homenagem em andamento. Assim, faixas de demonstrações de afeto, reconhecimento e adoração haviam sido estrategicamente dependuradas na Casa, pagas com o dinheiro recolhido entre os muitos que do homem dependiam para permanecer no gozo do bem-bom político e na farra que o Executivo promovia com o erário - era uma bacanal!

A sessão corria nos conformes, com as elegias de praxe, enquanto V. Prencia. fazia, a custo de muito teatro, ares de humilde servidor do povo, quando Nandico Pié, o bêbado e desocupado mais inconveniente do município, invadiu a Casa. Pié havia sido colega de escola do prefeito (conhecia como ninguém a vida pregressa do sujeito), mas tivera menos sorte na vida e ainda se tornara, primeiro, a figura mais extravagante da cidade, mais tarde, o bêbado de hoje. Foi só o prefeito iniciar seu discurso para Nandico Pié, balançando perigosamente lá no fundo do recinto, no meio da multidão, gritar a plenos pulmões: "É barnabé, barnabééé, uuuuhuuu!" V. Prencia. avermelhou-se todo, caiu da pose num passe de mágica e ficou fora de si, berrando que ainda ia dar "uns cacetes nesse bêbado de uma figa"... "Sou bêbado, mas não sou ladrão. Nem barnabééé, repetiu o outro.

Corre-corre no recinto. Aldinho Curió e Honorino Andrade se apressaram em tirar o bêbado dali, na esperança de que a sessão voltasse ao normal. Entre os presentes, não havia quem não soubesse o que aquela história de "barnabé" significava no passado e no presente do prefeito, mas os comentários eram ditos na surdina, cochichados com muita precaução. A dupla de puxa-sacos agarrou Pié e o dominou com facilidade, arrastando-o para fora da Casa em poucos segundos, já que o coitado quase não se sustentava em pé. Guardas municipais trancaram por dentro a porta da Câmara. E pronto.

V. Prencia. reajustou a gravata de seda chinesa, arremeteu o queixo e voltou ao discurso, lamentando que gente bêbada e baderneira ousasse empanar o brilho da sessão com tal exibição de impropriedade, etc, etc, mas ele ali estava para ser homenageado e agradecia aquela genuína manifestação popular de apreço à sua humilde pessoa, não merecia tanto, era apenas um servidor do povo, fiel escudeiro das causas dos mais pobres, e patati, patatá, pereré e pororó. "E tenho dito", concluiu majestosamente.

A corja toda não atentou para o fato de a Câmara possuir uma janela enorme, meio-balcão e baixinha, sempre aberta para a rua durante as sessões, com o objetivo de aliviar o calor no local. Foi por ali mesmo, bem na altura do "tenho dito", que Nandico enfiou a cabeça e, aos berros, recomeçou a gritar: "É barnabé, barnabééé, uuuhuuuu!", arreganhando a boca desdentada e irreverente.

Gente alheia aos meandros políticos avaliou a coragem de Nandico Pié, que apesar de bêbado e solitário, enfrentara a ira do chefão, sem se deixar engessar pelo poder tremendamente arrogante do prefeito - mais um! -, a exigir vassalagem e anuência de quase toda uma cidade pequena e acuada, ainda com pouco caráter para bater de frente com esse tipo indigno de atitude pública. Mas Nandico Pié, o bêbado inconseqüente, acabara de lançar uma semente de reação entre os inconformados, ainda que tenha amanhecido duro e frio como pedra, abraçado a uma garrafa de uísque escocês. Legítimo. E de procedência previsível, afinal Curió não se antinha no cargo por pouca porcaria.

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