UMA VIDA EM HOLLYWOOD
Luís Valise

 
 

A campainha tirou-me da idiotia. Levantei para abrir a porta, a tentação de não espiar no olho mágico (Entre, pior não poderá ficar), a lembrança do revólver longe, na gaveta do criado-mudo, melhor conferir: mulher com uma criança no colo. Abri.

“Boa-tarde. O senhor é jornalista, não é?” Era jovem, bonita e assustada. Engrossei a voz:

“Sou escritor.” Ela franziu os olhos:

“E qual a diferença?” Sorri, condescendente:

“Escrevo minhas próprias mentiras.” Abri mais a porta, dando passagem.

Foi entrando e falando “Não quero incomodar”, uma rápida conferida na sala, sofá, TV, estante com livros, cinzeiros com pontas envelhecidas e mal-cheirosas, o computador junto à janela, um quadro com o diploma em Direito por uma faculdade chinfrim, a foto com farda de soldado do Exército e outra no colo de minha mãe. Ela viu tudo em segundos, antes mesmo de sentar-se no sofá:

“Eu não sei o que fazer. Vim falar com o senhor porque pensei que o senhor fosse jornalista e pudesse me ajudar.” A criança se mexeu no seu colo, a saia subiu um pouco mostrando o começo de um par de coxas reluzentes. Sentei-me ao seu lado, mas não muito perto:

“Eu conheço algumas pessoas que trabalham em jornal. Na verdade eu escrevo para a Gazeta do Povo, um conto por semana. Se eu puder ajudar será um prazer.” A última palavra tinha duplo-sentido, o arrependimento veio tarde. Tudo para mim tem duplo-sentido.

“Meu marido sumiu.” Eu logo pensei em outra, ela foi mais rápida “Não havia outra. Nós nos amávamos. Nós nos amamos.” Senti uma momentânea e ridícula ponta de ciúme. “Há três dias ele não aparece. Não quero ir à polícia por causa do escândalo. Ele é bancário. Sub-Gerente. O Banco não gosta de funcionários com problemas. Dei desculpa que ele está doente. Não poderei esconder por muito mais tempo.” Ruy pegou o maço de cigarros no bolso da camisa, acendeu um e só então lembrou-se de oferecer “Fuma?”, “Não, obrigado. Parei quando tive o Júnior.” Lembrando-se da criança, ele se levantou e foi fumar perto da janela. “Sumiu, como?”

“Nós moramos dois andares acima, no 106. Ele andava meio esquisito. Deu pra ficar um tempão na janela, olhando pra fora, sonhador... Até que ele saiu pra comprar cigarros. Isso foi no sábado à tarde. Até hoje, terça-feira, ele não apareceu, não ligou, nada. O senhor conhece algum investigador de polícia que pudesse ver o caso pra mim, particularmente?” Os meus olhos se estreitaram. Fiz algumas perguntas sobre o desaparecido, nome, idade, peso e altura, hábitos, vícios, manias. Anotei o telefone dela e pedi que aguardasse notícias, tentaria descobrir algo imediatamente. A moça agradeceu, estendeu a mão e saiu com os olhos rasos d’água.

Aos trinta e oito anos Ruy se sentia um inútil. Tentara várias profissões, fracassara em todas. Até que se esforçava enquanto os pais eram vivos, filho único, motivo de orgulho do casal simplório e honesto. Viu lágrimas nos olhos do pai quando chegou em casa com o diploma pago durante cinco longuíssimos anos. O pai acariciava os grossos livros de Direito, novos em folha. Dr. Ruy Campalongo. Logo percebeu que não aprendera picas durante todo aquele tempo. Nem tentou advogar. Entre um emprego e outro cismou de fazer um curso de Detetive Particular. Também não aprendeu muito, mas custou menos. Ganhou carteirinha com distintivo dourado. Comprou algemas. Não podia andar armado, mas comprou um revólver que guardava ao lado da cama, e que vivia limpando, azeitando, carregando, recarregando. Sem aptidão para mais nada, acabou escrevendo uns contos de mistério que foram aceitos por um jornal que tinha espaço sobrando. Pagavam uma miséria. Às vezes ficava com o revólver na cinta enquanto escrevia junto à janela, esperando que o talento se apresentasse rendido, com as mãos erguidas, “eis-me aqui, Mestre, faça comigo o que quiser!”

Tirei a camisa e a bermuda, troquei por uma camiseta preta como as dos policiais do Grupo Tático Armado, vesti um jeans justo, tênis pretos, pus as algemas no bolso traseiro, peguei a carteira de Detetive e saí. Fui direto ao bar da esquina. Encostei no balcão, pedi licor de ovos com conhaque. O dono do bar a princípio não acreditou, mas viu que era sério, e serviu. Tomei num gole só. O dono do bar esperou pelo pior. Nem fiz cara feia, só enxuguei duas lágrimas. Acendi um cigarro e perguntei ao portuga:

“Sabe o Estevão, do apartamento 106, que sempre compra cigarros aqui?” O dono do bar fez que sim com a cabeça. “Ele esteve aqui sábado à tarde?” O dono do bar fez que não com a cabeça. Procurei dinheiro nos bolsos, tirei o par de algemas “sem querer”, mostrei num relance a carteira com o distintivo dourado, paguei e voltei pra casa. Peguei a arma no quarto, limpei-a com um pano seco e coloquei-a na cintura, na frente da barriga. Acendi um cigarro e cheguei junto da janela. Abri os vidros de correr. O horizonte estava a dez metros de distância, e era cheio de janelas como a minha. Nada chamou minha atenção. Sentei-me na frente do computador, liguei e esperei que a máquina se iluminasse. Posicionei o cursor no centro da tela e fiz o título em maiúsculas. Depois de algum tempo concluí que mistério mesmo era como conseguia escrever, pois não tinha idéia nenhuma. Maldição! Acendi outro cigarro, e soprei a fumaça para fora da janela, como um grito de socorro.

O telefone tocou, era a Myrthes, do 106, mulher do Estevão, perguntando se havia novidades. Eu disse que começara a trabalhar no caso, mas não queria adiantar nada para não atrapalhar as investigações. Pensei em convidá-la para mais uma conversa, desta vez sem a criança. Enquanto me decidia se convidava ou não, ela desligou o telefone. Tornei a olhar para fora, e foi quando eu vi, na direção da minha janela, um andar abaixo: ela andava calmamente pelo apartamento, iluminada pela luz da TV. Cabelos longos, alta e esguia, feições indefinidas pela penumbra. Ergui-me, apaguei a luz da sala, deixando apenas a tela do computador acesa. Pensei na mulher intensamente, e ela também olhou em minha direção, atraída pela silhueta do homem de preto que acariciava a coronha do revólver preso à cintura. Ela chegou-se mais próxima da janela, e olhou-me direto nos olhos, sem se importar com os mamilos subitamente pontudos. Sorriu, misteriosa, e fechou a cortina da sala. Excitadíssimo, sentei-me defronte ao computador, estalei os dedos, e ia começar a escrever, quando mudei de idéia e entrei num site erótico.

Ao acordar pela manhã Ruy viu a arma ao seu lado na cama. Pegou-a com cuidado e guardou-a na gaveta do criado-mudo. Foi direto pro chuveiro quente, e esfriou a água aos poucos. Ao terminar o banho a água estava fria. Fechou a torneira e reparou na fumaça que subia da sua pele. Sentiu-se forte, macho, um Detetive Particular! Enxugou-se e vestiu apenas um robe de tecido atoalhado. Foi até a cozinha, abriu a geladeira, pegou uma garrafa de cerveja preta e um ovo cru. Despejou a cerveja numa caneca de louça, quebrou o ovo e jogou-o dentro da cerveja. Bebeu sem tirar da boca. Sentiu quando a gema deslizou lisinha pela sua garganta, como uma ostra graúda. Soltou um arroto longo e gutural. Igualzinho o Paul Newman num filme.Acendeu um cigarro e andou até a janela. A cortina da loira estava aberta, mas não havia ninguém lá. Ligou o computador, foi até o quarto e pegou o revólver. Colocou-o ao lado do teclado, releu o título em maiúsculas e ia começar a escrever quando o telefone tocou. Devia ser a Myrthes, de novo. Precisava dizer algo encorajador. Tentou esconder a voz de canastrão “Alô?”, do outro lado um instante de silêncio, e então um “Oi, tudo bem?” entrou pelos seus ouvidos como anfetamina. O coração acelerou e ele, sempre carente, quase chamou a voz de meu amor. Controlou-se. Detetive Particular. Olhava diretamente a tela do computador, mas sua visão periférica mostrava que alguém agora estava de novo naquela janela. Calmamente, pegou o revólver e coçou a bochecha com o cano, displicente. Só então respondeu:

“Muito bem, e você?” A voz era um cetim aveludado:

“Você sempre anda armado?” Empostou mais a voz:

“Sempre, querida, já nasci armado.” (Outra vez o duplo-sentido!).

“Eu sempre te vejo debruçado nesse computador. Você é escritor?”

“Você sempre me vê? Sempre como? Desde quando?”

“Faz tempo. Você é que nunca teve olhos pra mim.”

“É. Eu escrevo. Quer dizer, eu também escrevo.”

“E o que é que você escreve?”

“Contos de mistério. Adoro coisas misteriosas, proibidas...”

“Quando é que você vai me mostrar esses mistérios?...”

“Quando você quiser, baby.” Estava quase babando. Ovo cru era fogo!

“Então eu te espero hoje. Não diga a ninguém. Venha armado...”

Tive que me segurar ao máximo para não demonstrar euforia. Coloquei o telefone calmamente no gancho, e olhei para a janela. Já estava vazia. Olhei novamente para a tela à minha frente. Fiz um beiço resoluto e desliguei o aparelho. Mais tarde teria uma história de verdade! Peguei o revólver e fui para o quarto. Vesti bermuda folgada, camisa velha, abri a porta e peguei o jornal do dia sobre o capacho da entrada. Sentei no sofá e tentei ler, uma, duas vezes a mesma notícia, mas não conseguia me concentrar. Fiquei fingindo que lia, enquanto lembrava a voz acetinada dizendo que me via há muito tempo... Será que ela via quando eu às vezes cochilava defronte a tela? Fiquei bravo comigo mesmo. Voltei ao quarto, deitei-me, olhando o teto, quando o telefone tocou. Levantei num pulo, cheguei na sala aparentando calma “Alô?” Agora era a Myrthes:

“E então? Alguma novidade?” sua voz era a própria ansiedade.

“Quase. À tardinha eu deverei ter alguma coisa. Nos vemos no meu apartamento ou no teu?” (Diabo de duplo-sentido!)

“Nem uma coisa nem outra. Você me liga.”

Desliguei o telefone com estudada displicência, voltei ao quarto, separei a roupa do Grupo Tático Armado. Fui ao banheiro fazer a barba. Escanhoei duas vezes. Passei loção pós-barba. Escovei os dentes demoradamente. Me vesti com cuidado. Guardei as algemas no bolso traseiro. Lustrei o distintivo dourado. Hesitei, mas acabei encaixando o revólver na cintura. Olhei-me no espelho. Um tira durão.

Não havia ninguém na rua. Passei lentamente pela porta do prédio vizinho. O porteiro lia o jornal. Entrei de mansinho pela garagem, sem que o homem notasse. Tomei o elevador, apertei o oitavo andar. Saí do elevador, uma porta estava entreaberta. Empurrei-a com a ponta do dedo. As cortinas estavam fechadas. Apenas um abajur iluminava o ambiente minimamente decorado. Ela estava sentada no sofá e levantou-se quando eu entrei. Era mais alta que eu. Um vestido leve, florido, sandálias de tiras deixavam os pés à mostra. Não era propriamente bonita, mas tinha algo que hipnotizava. Estendeu-me a mão de dedos compridos, unhas pintadas com esmalte incolor:

“Ivana.”

“Ruy.”

Ela me encarava com naturalidade, e eu, sem saber o que fazer, apalpei a arma na cintura, no que julguei um gesto másculo. Sentados no sofá, ela me ofereceu um licor, o que aceitei de pronto:

“Se tiver de ovos, melhor.” Não tinha. Ela trouxe licor de menta. Sussurrou “Mostra sua arma pra mim?” Senti minhas faces pegando fogo. Tirei o revólver e entreguei-o a ela. Ivana sopesou a arma com intimidade.

“O que mais você faz, além de escrever contos de mistério? Pra quê a arma?” Ergui o queixo, busquei auto-confiança:

“Detetive. Particular. E você, o que faz, além de enfeitiçar a vizinhança?” (Arrependi-me pela frase reveladora, mas já era tarde).

“Ando em busca de um coração...”

Acostumado aos duplo-sentidos, ri gostosamente: “O meu está às ordens..” Ivana passou a língua entre os lábios “Senta mais perto de mim...” Sentei. E beijei, e passei a mão nas suas coxas, até que ela sugeriu que fossemos para o quarto.

O quarto também tinha pouca luz, mas eu pude ver umas correntes sobre a cama. Ivana explicou: “Eu gosto de umas brincadeirinhas...” Naquela hora eu topava tudo. Fui até o banheiro, notei a grande banheira branca, pensei numa sacanagem dentro d’água, dei a idéia, “mais tarde,” disse Ivana, já nua, majestosa, sussurrando “deita, deita”, cobrindo-me de beijos, prendendo minhas mãos e pés nas correntes de ferro, “deixa, deixa, eu fico louca,” e eu deixando tudo, até a máscara de couro que tapou meus olhos e me deu uma certa angústia, “tira a máscara, tira,” pedi, “já-já eu tiro, só mais um pouquinho,” Ivana falou, e falou também “puxa, você veio mesmo armado, hein”, sacana Ivana, sua puta sacana, senti uma picada no braço, “ô Ivana, putana sacana, o que você vai fazer comigo, brincar com minha arma? Tira a porra desta máscara, já falei, tira essa porr...a des...ta más...”.

Ivana desceu da cama, abriu uma gaveta, pegou um estetoscópio e ouviu o coração do Ruy. Sorriu satisfeita, “detetive de merda.” Voltou para a sala, telefonou para o hospital, pediu o setor de transplantes, falou baixo: “Tem mais um, pode vir buscar. Põe a grana na minha conta.”

Os jornais foram-se amontoando junto à porta, até chamar a atenção do zelador, que chamou a polícia e abriu a porta com uma cópia da chave. Um colega do jornal ligou o computador. O título estava lá, maiúsculo:

A JANELA DO INFERNO
por Ruy Campalongo

 
 

fale com o autor