OLHAR
Mairy Sarmanho

Minha janela dá para olhar o mundo lá fora, mas não gosto que o mundo lá fora me olhe: por isso coloquei cortinas azuis de crochê feitas a mão para evitar que olhares curiosos invadam minha janela. Vivo como gosto: gosto de uma casa simples, sem fricotes; de uma família mínima incluindo eu e meu marido; de uma multidão de animais que resgatei das ruas e com os quais divido meu espaço; de muita tecnologia e muito amor à disposição e, principalmente, de paz e privacidade. Às vezes, quando as pessoas ousam espichar seus pescoços para tentar vislumbrar meus segredos por minhas janelas, chego a pensar em lacrá-las, tampar suas almas abertas com tijolos de barro queimado, restringir a visão de minha vida por uma única abertura que apelidamos porta. Mas sinto que é exagero, que as cortinas fazem o papel de filtro, que não poderão invadir minha vida...

Confesso que muito me assusta o olhar crítico daqueles que nada tem descente a fazer na vida. Não suporto interrogatórios (os jornalistas chamam de entrevista) nem de fotografias divulgadas aos quatro cantos do mundo para que te reconheçam mesmo quando você não quer que o façam... Detesto olhares espantados, surpresos, admirados que invadem meu espaço e suspiram meu nome como se fosse coisa de outro mundo. Atentem: ainda não morri nem o pretendo fazer tão breve! Resistirei até o último golpe de ar que ouse entrar em meus pulmões ressecados pela poluição e resíduos que tantas e tantas guerras sujas espalham no ar... Não quero que me admirem porque não tenho ninguém para admirar, nem quero que me idolatrem porque não idolatro nada nesse mundo tão... humano!

Odeio quando espiam pelas grades imensas que cercam meus portões e ousam criticar: para quê tantos cães? Quando ouço e corro a tempo de retrucar, respondo: para quê tantas pessoas nesse mundo já tão apertado de injustiças e descasos? Prefiro o cheiro dos animais à arrogância e crueldade humanas...

De mim alguns esperam muito. Mas eu não espero nada. Quero apenas viver o sentido de cada dia e tecer, lentamente, a colcha de sentimentos que carregarei comigo na hora da morte. Porque se existe algum sentido em estar aqui, nesse mundo, viva e sobrevivendo, esse só pode ser tecer um grande e imenso invólucro para nossa alma, o qual apresentaremos nos portões da eternidade para São Pedro ou qualquer outro que lá esteja de porteiro e possamos ser julgados pelos feitos ou malfeitos dessa existência.

Minhas janelas não são muitas, até são poucas, mas existem para que entre luz em minha casa e não olhares curiosos e maldosos repletos de críticas... Gosto de olhar pela minha janela não para ver os vizinhos (aos quais eu apenas exerço minha elasticidade de paciência ou falta dela), mas sim para ver as árvores que florescem o ano inteiro, as borboletas que flutuam como folhas repletas de poemas ao sabor do vento, os pássaros que salpicam os muros com seus escrementos esbranquiçados, os cães que desfilam como donos da rua sem terem dono algum que os amparem e os gatos que namoram a noite inteira interrompendo meu sono e me forçando a pensar na vida. Gosto de minha janela porque ela deixa entrar o sol e a luz que necessito. Gosto de espiar pela janela a vida lá fora como gosto da vida que levo aqui dentro! 

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